Uma das afirmações mais
repetidas pelos críticos do Cânon do NT é a afirmação de que os
apócrifos, e em especial os evangelhos apócrifos, eram tão comuns e tão
utilizados quanto os escritos do Novo Testamento. Helmut Koester é um bom
exemplo dessa tendência. Ele lamenta o fato de que os termos “apócrifo”
e “canônico” ainda sejam usados pelos estudiosos modernos, porque,
segundo ele, esses termos estão relacionados a “preconceitos de longa
data” contra a autenticidade dos textos apócrifos. [1] Koester, em seguida,
argumenta: “Se considerarmos o período mais antigo da tradição, veremos que
vários evangelhos apócrifos são tão atestados quanto aqueles que mais tarde
receberam o status de canônico“. [2] William Petersen oferece uma abordagem
semelhante quando diz que os evangelhos apócrifos eram tão populares que “estavam
se multiplicando como coelhos“. [3]
Mas será que é realmente verdade que os evangelhos
apócrifos foram tão populares e difundidos quanto os Evangelhos canônicos? Eles
estavam realmente em pé de igualdade? Três conjuntos de evidência sugerem
o contrário:
Manuscritos sobreviventes. Os restos físicos dos escritos podem nos dar uma indicação de suas
popularidades relativas. Esses restos são capazes de dizer quais livros
eram utilizados, lidos e copiados. Quando examinamos os restos físicos de
textos cristãos, desde os primeiros séculos (segundo e terceiro), nós
rapidamente descobrimos que os escritos do NT eram de longe os mais populares.
Atualmente, temos mais de 60 manuscritos existentes (no todo ou em partes) do
Novo Testamento a partir deste período, com a maioria das nossas cópias
provenientes de Mateus, João, Lucas, Atos, Romanos, Hebreus e Apocalipse. O
Evangelho de João revela-se o mais popular de todos, com 18 manuscritos, alguns
dos quais derivam do segundo século (por exemplo, P52, P90, P66,
P75). Mateus não está muito atrás com 12 manuscritos, e alguns deles
também datam do século II (por exemplo, P 64-67, P77, P103,
P104).
Durante o mesmo período de tempo, entre o segundo e
terceiro século, possuímos cerca de 17 manuscritos de apócrifos, como o
Evangelho de Tomé, o Evangelho de Maria, o Evangelho de Pedro, o
proto-evangelho de Tiago, e outros. De todos, o Evangelho de Tomé é o que tem
mais manuscritos: apenas três.
As implicações dessa disparidade numérica não foram
ignoradas pelos estudiosos modernos. Larry Hurtado afirma que o baixo número de
manuscritos apócrifos “não justifica qualquer noção de que estes escritos
tenham sido particularmente favorecidos” e que quaisquer que fossem os
círculos que os utilizavam, eles “eram provavelmente uma minoria clara entre
os cristãos dos séculos II e III“. [4] Da mesma forma, C.H. Roberts
observa: “Uma vez que a evidência dos papiros está disponível,
indiscutivelmente os textos gnósticos são notáveis por sua raridade“.
[5] Scott Charlesworth concorda: “Se o ‘heterodoxo’ estava entre a maioria
por tanto tempo, os evangelhos não-canônicos deveriam ter sido preservados em
maior número no Egito. “[6]
Frequência de citação. Embora os estudiosos geralmente se concentrem em determinar se os
livros apócrifos foram ou não citados, eles não prestam atenção o suficiente na
frequência em que eles são citados em comparação com os escritos canônicos.
Quando esses dados são considerados, a disparidade entre os escritos apócrifos
e os canônicos torna-se ainda mais evidente.
Tomemos, por exemplo, Clemente de Alexandria,
muitas vezes mencionado como um pai igreja primitiva que tem igual preferência
quando se trata de escritos canônicos e apócrifos. No entanto, quando a frequência
das citações é considerada, essa alegação se revela infundada. Clemente prefere
vastamente os livros do Novo Testamento à literatura apócrifa ou a outros
escritos cristãos. JA Brooks observou que Clemente cita os livros canônicos
“cerca de 16 vezes mais do que escritos apócrifos e patrísticos.” [7] Esta
disparidade é torna-se ainda maior se considerarmos apenas os quatro
Evangelhos. De acordo com o trabalho de Bernard Mutschler, Clemente se refere
ao Evangelho de Mateus 757 vezes, ao de Lucas 402 vezes, ao de João 331 vezes,
e ao de Marcos 182 vezes. [8] Comparativamente, Clemente cita apenas 16 vezes
os evangelhos apócrifos. [9] Aparentemente, Clemente não tinha dúvidas sobre
quais livros ele considerava canônicos.
Forma de citação. Se, de
fato, os escritos apócrifos eram tão valorizados quanto os escritos
canônicos, esperaríamos que isso se refletisse na forma como esses livros são
citados. Será que os pais da igreja primitiva citaram os escritos
apócrifos como Escritura? Raramente. Em alguns casos, parece que livros como o Pastor
de Hermas ou a Epístola de Barnabé foram considerados como tendo um
status de escritura. Mas esse era um ponto de vista minoritário. Quando
examinamos quais livros os primeiros cristãos realmente consideravam como
Escritura (e não simplesmente aqueles que os cristãos utilizavam de forma geral),
então os livros canônicos são, de longe os mais populares. Isso é confirmado
pelo fato de que havia um cânon “central” de livros num período próximo à
metade do segundo século.
Além disso, um grande número desses escritos
apócrifos foi expressamente condenado pelos primeiros cristãos. Tomemos, por
exemplo, o tão discutido Evangelho de Tomé. Esse livro nunca foi mencionado em
qualquer uma das listas canônica primitivas. Esse livro nunca foi encontrado em
qualquer uma de nossas coleções de manuscritos do Novo Testamento. E esse livro
nunca entrou como figura de destaque nas discussões canônicas, e muitas vezes
foi condenado abertamente por uma variedade de pais da igreja. [10] Assim, se o
Evangelho de Tomé foi um relato amplamente lido e amplamente recebido, então
ele deixou muito pouca evidência histórica disso.
Todo mundo adora uma boa teoria da conspiração.
Certamente seria muito mais divertido se alguém pudesse mostrar que os livros
apócrifos realmente eram Escrituras da Igreja Primitiva e que foram reprimidos
pelas maquinações políticas da igreja posteriormente (ie, com Constantino). Mas
a verdade é muito menos sensacional. Apesar de os livros apócrifos receberem
algum status bíblico de vez em quando, a esmagadora maioria dos primeiros
cristãos preferiram os livros que estão hoje em nosso cânon do Novo Testamento.
Assim, somos lembrados mais uma vez que a igreja não “inventou” o cânon
arbitrariamente no quarto ou quinto século. Pelo contrário, as afirmações
posteriores da igreja simplesmente refletiram o que já era o caso de muitos e
muitos anos.
[1] H.
Koester, “Apocryphal and Canonical Gospels,” Harvard Theological Review 73
(1980): 106.
[2] Koester,
“Apocryphal and Canonical Gospels,” 107.
[3] W.
L. Petersen, “The Diatesseron and the Fourfold Gospel,” in The Earliest
Gospels (ed. C. Horton; London and New York: T&T Clark
International, 2004), 51.
[4] Larry
Hurtado, The Earliest Christian Artifacts, 21-22.
[5] C.
H. Roberts, Manuscript, Society and Belief, 52.
[6] Scott
Charlesworth, “Indicators of “Catholicity” in Early Gospel Manuscripts,”
in The
Early Text of the New Testament (ed. C. E. Hill and M. J. Kruger;
Oxford: Oxford University Press, 2013).
[7] J.
A. Brooks, “Clement of Alexandria,” 48.
[8] Bernard
Mutschler, Irenäus als johanneischer Theologe (Tübingen: Mohr
Siebeck, 2004), 101.
[9]
Brooks, “Clement of Alexandria,” 44.
[10] E.g.,
Hippolytus, Ref. 5.7.20; Origen, Hom. Luc. 1;
Eusebius, Hist. eccl. 3.25.6.
Tradução: Erving Ximendes
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