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terça-feira, 7 de julho de 2020

A pontuação de Lucas 23.43

O que acontece conosco após a morte? Há muita discussão sobre este assunto em meio cristão, onde tradicionalmente se acredita que a alma se mantém consciente até a ressurreição. Por outro lado, alguns têm questionado esta crença, argumentando através de vários textos que relatam que a alma dorme, que há na verdade um estado de inconsciência, até mesmo dizendo que a alma deixa de existir entre a morte e a ressurreição. Esta última doutrina é conhecida em meios teológicos como Aniquilacionismo.
Curiosamente muitos textos bíblicos contradizem esta noção de aniquilamento, entre os mais notáveis está o texto de Lucas 23.43. Ali encontramos o diálogo entre o ladrão na cruz e o Senhor Jesus Cristo. Rechaçando as palavras zombeteiras de seu colega, o ladrão pede para Cristo que se lembre dele em seu reino. A resposta de Jesus é enfática:

Respondeu-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso. – Lucas 23.43

A resposta não foi que o ladrão seria ressuscitado no mesmo dia. A resposta não foi que o ladrão estaria com Cristo em seu reino no futuro. A resposta foi que eles estariam naquele mesmo dia, no paraíso, o que aponta para um estado intermediário onde eles existiriam. Afinal de contas, para se estar em algum lugar, necessário é primeiro existir. E se este lugar é um lugar diferenciado daquele para onde vão os ímpios, deve então haver alguma vantagem para a pessoa estar ali, o que pode dar indício de uma existência consciente (Lc 16.19-31).

Um testemunho assim deveria ser capaz de aniquilar qualquer dúvida sobre o estado intermediário. No entanto, ainda há espaço para discussão sobre a interpretação do verso em questão. Tomando-se como exemplo a Tradução do Novo Mundo, Bíblia traduzida e usada pela seita das Testemunhas de Jeová, que são aniquilacionistas. Este versículo é traduzido assim:

E ele lhe disse: “Deveras, eu te digo hoje: Estarás comigo no Paraíso.” – Lucas 23.43, TNM

Como pode-se notar, o advérbio de tempo hoje está modificando o primeiro verbo, digo. Esta é a estratégia que aniquilacionistas normalmente adotam para interpretar o texto, já que o idioma original não possuía vírgulas para separar as orações. Assim, a ênfase de Jesus está sobre o ato de dizer.

Com duas versões possíveis para o texto, como então resolver qual a melhor tradução? Muitas pessoas têm respondido a esta última tradução, alegando que o verbo no presente juntamente com o advérbio hoje seria uma repetição desnecessária. No entanto, esta argumentação ignora que o idioma grego também pode se valer de repetições para enfatizar algo.

Por outro lado, acredito que uma análise do contexto e da sintaxe do texto são capazes de esclarecer quaisquer dúvidas sobre a tradução deste texto. Jesus estava respondendo um pedido do ladrão, então, vamos começar analisando este pedido, que Lucas registra como:
———
Lucas 23.42Então disse: Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino.
και ελεγεν ιησου μνησθητι μου οταν ελθης εις την βασιλειαν σου
———
A sintaxe desta frase nos revela detalhes muito interessantes, que nossas traduções não costumam trazer. Observem este pedido: O ladrão pede para que Jesus se lembre dele. A palavra usada aqui é μνησθητι, que é um imperativo aoristo passivo. Qual é a função sintática de um imperativo aoristo? Em sua gramática, Daniel Wallace nos revela que este imperativo aoristo pode ser colocado sob duas categorias: o ingressivo e o constativo. O ingressivo tem como foco, o início da ação. No verso acima, seria como se o ladrão pedisse para Jesus começasse a se lembrar dele. Por outro lado, o imperativo aoristo constantivo parece se encaixar muito melhor no contexto deste relato:

Essa é uma ordem solene ou categórica. A ênfase não está no “comece uma ação”, nem “continue a agir”. A ênfase, porém, está na solenidade e urgência da ação. Assim, “Eu solenemente conjuro-te a agir e faço-o agora!”. Esse é o uso do aoristo em preceitos gerais. Embora o mesmo esteja aqui transgredindo o papel do tempo presente, ele acrescenta certo gosto. É como se o autor dissesse: “Faça disso sua prioridade número um”. Como tal, o aoristo é frequentemente usado para ordenar uma ação que está em estado de processo. Nesse caso, tanto a solenidade quanto a urgência destacada são sua força. Gramática Grega, Wallace, Daniel B. Página 720, Editora EBR.

Mas Daniel Wallace explica isto de forma ainda melhor:
Em sumário sobre o imperativo aoristo constativo, pode ser dito como uma regra geral que essa ordem nada fala sobre o começar ou continuar uma ação. Ele basicamente tem a força de: “fazer de algo sua prioridade número um”. Nosso conhecimento sobre o autor e o contexto nos ajudará a ver se os ouvintes têm feito qualquer prioridade quanto a isso, ou se eles o têm negligenciado completamente. Gramática Grega, Wallace, Daniel B. Página 479, Editora EBR.
Assim, o nosso ladrão não apenas pede para Jesus se lembrar dele, mas também pede que se lembre dele com prioridade, tamanha é a ansiedade deste homem por redenção.

Embora ele demonstrasse tanta certeza sobre o fato de Jesus ser o Messias e sobre Jesus entrar no reino celestial, ele não tem certeza sobre quando isto iria acontecer. Por isto ele utiliza também a construção οταν + verbo no subjuntivo. Daniel Wallace em outro lugar explica esta construção:
O subjuntivo frequentemente é usado depois de um advérbio temporal (ou preposição imprópria) com o sentido de até que (ex., ως, χρι, μέχρι). Ou ainda mesmo, depois da conjunção temporal ταν com o sentido de quando quer que. Ele indica uma contingência futura da perspectiva do tempo do verbo principal. Gramática Grega, Wallace, Daniel B. Página 479, Editora EBR.

O pedido do ladrão, portanto, seria como: “Jesus, quando quer que você entre em teu reino, lembre-se de mim em primeiro lugar!”. Este é o pedido do ladrão, e a forma de se traduzir a resposta de Jesus deve levar este pedido em conta. Pois uma resposta que não o responde, estaria violando o contexto do relato.
Conhecendo, portanto o pedido do ladrão, voltemos à resposta dada por Jesus. Sua resposta foi:
———
Lucas 23.43Respondeu-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso.
και ειπεν αυτω αμην σοι λεγω σημερον μετ εμου εση εν τω παραδεισω
———
Aqui, Jesus inicia sua resposta com a expressão αμην λεγω (Verdade, te digo). Sobre a expressão, o BDAG nos diz: partícula asseverativa, verdadeiramente, sempre com λεγω, iniciando uma declaração solene mas usada somente por Jesus (Eu te asseguro que, Eu solenemente te digo). – BDAG, verbete αμην

Assim, esta era uma expressão solene usada apenas por Jesus. Digno de nota é que em nenhuma das instâncias que Jesus a usa, ela é modificada pelo advérbio σημερον (hoje), como pode ser visto em Mt 5:18; Mt 5:26; Mt 6:2; Mt 6:5; Mt 6:16; Mt 8:10; Mc 8:12; Mc 9:1; Lc 4:24; Lc 12:37 e outros.

Blass e A. Debrunner, em sua gramática, notam que:

A posição de nomes e advérbios

(1) A regra é que um atributivo adjetivo anarto geralmente segue seu substantivo. (2) Um advérbio que define um adjetivo (ou um verbo) também toma a segunda posição. (3) Mt particularmente tem o hábito de colocar advérbios depois de imperativos enquanto coloca-os antes de indicativos. A Greek Grammar of the New Testament and Other Early Christian Literature (BDF), parágrafo 474.

Assim, o item 2 deste texto do BDF tem sido usado às vezes para se defender que σημερον deve modificar o verbo λεγω, que o antecede. O terceiro ponto, no entanto, mostra que isto não era uma regra, já que Mateus os coloca antes de infinitivos. Além disto, o BDF comentando o segundo ponto, nos diz:

(2) Mt 4:8 υψηλον λιαν, 2:16 εθυμωθη λιαν, cf. μέλας δεινς Aelian, NA 1.19, ρημος δεινς 4.27. Mas também λιαν (om. D) πρωι Mk 16:2, λιαν γαρ αντεστη, 2Ts 4:15.

Ou seja, o próprio BDF nos traz exemplos onde um advérbio de tempo precede o verbo que ele modifica. Que motivos Lucas teria para colocar o advérbio antes? O BDF, falando sobre ordem de palavras no grego, comenta:

472 – A ordem de palavras no Grego e assim no NT é mais livre do que em línguas modernas. Há, contudo, certas tendências e hábitos (no NT especialmente em narrativas) que tem criado algo como uma ordem de palavras comum.
Mais adiante, o BDF comenta ainda:

(2) Estas posições, contudo, não são de qualquer forma mandatórias. Qualquer ênfase em um elemento da sentença faz aquele elemento ser movido para frente…

Assim, se o elemento precisa de destaque, é natural que ele seja movimentado para frente. Se a palavra hoje precisava de destaque, seria de se esperar que ela fosse movida para o início da declaração. A pergunta é: ela precisava de destaque? Agora voltamos ao contexto.

Observamos que o pedido do ladrão demonstrava urgência. Ele pedia algo como “Jesus, dê prioridade para isto”, e Jesus respondia: “Não se preocupe: hoje mesmo você colherá os frutos de sua confissão”.

Por outro lado, o ladrão expressou também uma dúvida sobre o tempo que Jesus poderia cumprir esta promessa. Ele disse algo como “Quando quer que você entre em seu reino“, e a resposta de Jesus faz um grande contraste com esta dúvida: “Hoje estarás comigo no paraíso“.

Certamente esta tradução se encaixa bem melhor no contexto, do que a ênfase sobre o momento da promessa. O ladrão não queria saber quando a promessa era feita, mas quando ela se cumpriria.

Há ainda alguma contra-argumentação contra esta tradução, mesmo que a forma “te digo hoje” não se encaixe no contexto. Costuma-se alegar que, se Lucas desejasse deixar claro que hoje modifica o verbo estarás, ele teria usado a conjunção οτι (queantes de σημερον. Este argumento é irrelevante, pois da mesma forma, Lucas poderia usar οτι depois de σημερον.

Por outro lado, costuma-se também citar as palavras de Jesus ressurreto, no evangelho de João: Disse-lhe Jesus: Deixa de me tocar, porque ainda não subi ao Pai; mas vai a meus irmãos e dize-lhes que eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus. – João 20.17

O objetivo é demonstrar que Jesus não poderia ter ido ao paraíso naquele mesmo dia, pois depois, ao ressuscitar, ele teria dito que não tinha subido ao Pai ainda. Esta argumentação também é irrelevante, pois ela pressupõe que o paraíso mencionado por Jesus esteja localizado no céu, algo que não pode ser demonstrado através de textos bíblicos. Mesmo recorrendo-se à literatura judaica da época, que fala sobre a localização do paraíso, podemos perceber que o paraíso não é localizado onde Deus “habita”. O segundo livro de Enoque, por exemplo, situa o paraíso no terceiro céu, sendo que Deus “habita” o sétimo céu (2 Enoque 3).

Conclusão

Acreditamos que o contexto é primordial na seleção de qual a melhor tradução deste texto. E como observamos aqui, a tradução que melhor preserva o contexto é a tradução que faz o advérbio hoje modificar o verbo estarás. Como Daniel B. Wallace disse em sua gramática, e que já citamos antes, “Nosso conhecimento sobre o autor e o contexto nos ajudará a ver se os ouvintes têm feito qualquer prioridade quanto a isso, ou se eles o têm negligenciado completamente”. Quando Jesus diz que hoje o ladrão estaria no paraíso, Jesus estava demonstrando que realmente estava tratando aquele assunto com a mais alta prioridade. Não era apenas uma promessa feita naquele dia, mas era uma promessa cumprida naquele dia – o ladrão arrependido encontrou-se com Jesus naquele dia! 
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Extraído do site http://www.e-cristianismo.com.br/ em 01/07/2020

Fonte: CACP

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