Identidade
é importante. É importante para a nossa cultura, inundada por políticas
identitárias e pelos apelos inatacáveis que o conceito de identidade proporciona.
E é importante entre os cristãos. Nós chamamos as pessoas a viver de acordo com
e à altura de quem elas são em Cristo: peregrinos e forasteiros, sal e luz,
membros do corpo de Cristo ou da noiva de Cristo, templo do Espírito, nova
criação e assim por diante. Nós encorajamos uns aos outros a nos
revestirmos do novo homem.
Contudo,
com frequência, os marcadores identitários do Novo Testamento são mais
informados por nosso próprio contexto e nossas pressuposições culturais do que
pelo enredo bíblico. O enredo do peregrino e forasteiro pode se tornar o enredo
do fundamentalista cultural justificando seu desengajamento. O enredo da noiva
pode facilmente se tornar o enredo de um sentimentalismo egocêntrico no qual,
como acontece com as noivas americanas todos os sábados, nós somos o foco e o
centro de tudo.
A
história da filiação
Todavia,
se havemos de aprender a usar os marcadores identitários da Bíblia em nosso
aconselhamento e discipulado, então precisamos compreender o enredo bíblico
mais amplo de nossa identidade como filhos e filhas de Deus. Esse enredo é uma
ferramenta poderosa para combater o discipulado narcisista que permeia grande
parte do cristianismo.
Princípios
Da
criação de Adão e Eva conforme a semelhança de Deus à sua responsabilidade de
representar Deus como vice-regentes sobre a criação (Gênesis 1.26-28), ao seu privilégio
de intimidade com Deus (Gênesis 3.8) e sua habilidade singular de refletir de
volta para Deus a sua glória, à sua obrigação de obedecer (Gênesis 2.15), a imago
Deise projeta na forma de filiação. Desde o princípio, o padrão se
estabelece: tal pai, tal filho. Assim como Deus governa a criação, também o
filho deveria representar aquele governo.
Como
é óbvio, o primeiro filho, Adão, foi desobediente ao seu Pai. A imagem de Deus
não foi perdida, mas ela agora vem com a herança maldita do nosso pai terreno,
uma natureza corrompida e arruinada pelo pecado. Desse ponto em diante, a
inclusão na família de Deus não é mais por nascimento, mas por adoção.
Um
novo começo?
Em
Gênesis 12, Abrão, o filho de um idólatra, é adotado por Deus a fim de
tornar-se o pai de uma nova nação. Ele recebe um novo nome: Abraão. Ele recebe
a promessa de um filho e, mais do que isso, de uma herança para aquele filho.
De
novo e de novo, essa promessa é posta em xeque: pela esterilidade, pela
traição, pela fome, pela própria morte. Quando Deus chama Abraão a sacrificar o
seu filho como oferta queimada (Gênesis 22.2), parece que a promessa e a
história do filho estão acabadas, porque o filho ainda é o filho de Adão que
merece morrer.
Mas
Deus não acabou. Ele resgata o filho de Abraão, o filho de Isaque e os filhos
de Jacó, até que o filho se torna a nação de Israel inteira.
Em
Êxodo 4, Deus diz a Moisés que diga a Faraó: “Deixe o meu filho ir para
prestar-me culto” (v. 23, NVI). Deus então resgata o seu filho corporativo,
Israel, do rei-serpente e conduz o seu filho à sua herança, a terra prometida,
um segundo Jardim do Éden.
Deus
também suscita um rei, um homem segundo o seu coração, chamado Davi, e lhe
promete que um filho dele governará sobre um reino que não terá fim. O filho de
Davi será o filho de Deus, que representará tanto Deus como o seu povo. Ele
reinará em justiça e fará a obra que o Pai lhe confiar, resgatando o seu povo
das mãos de seus inimigos.
Mas
nem o filho corporativo nem os filhos de Davi são fiéis. Eles continuam em sua
rebelião. Ao final do Antigo Testamento, o trono de Davi está vazio.
O
Filho vem e nos torna filhos
Então
veio o verdadeiro Filho de Deus. Jesus é o Filho Divino encarnado, o verdadeiro
Rei, o Messias que veio para fazer a obra que o Pai lhe confiara (João 4.34,
5.19, 6.38). Ele afirmou representar Deus: se você o visse, teria visto o Pai
(João 1.49). Jesus é a verdadeira imago Dei, o segundo Adão, o
verdadeiro Israel. Enfim, tal Pai, tal Filho.
Surpreendentemente,
o filho corporativo o rejeitou. Contudo, Deus ressuscitou o Filho dentre os
mortos e o fez assentar no próprio trono dos céus, de modo que todos os filhos
da desobediência que se voltarem de seus pecados e forem unidos ao verdadeiro
Filho pela fé receberão o poder de se tornarem filhos de Deus, adotados na
família de Deus.
Uma
vez adotados, eles são conformados à imagem do Filho a quem Deus ama. Esse
processo não terminará até o dia em que o virmos, quando enfim seremos como ele
é. “Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, a ponto de sermos chamados
filhos de Deus” (1 João 3.1). E, quando enfim formos como ele é, reinarmos
com ele como filhos e filhas de Deus (2 Timóteo 2.2; Apocalipse 20.4, 6).
Discipulando
e aconselhando a partir do enredo da filiação
Como
esse enredo de filiação impacta o modo como nós usamos essa identidade bíblica
em nosso discipulado e aconselhamento? Quero enfatizar quatro coisas.
1.
O Pai ama os filhos porque o Pai ama o Filho
Primeiro,
o Pai ama os filhos porque o Pai ama o Filho. O amor de Deus
por nós como filhos não começa conosco. Começa com o seu amor pelo Filho Jesus
Cristo. Por quê? Porque o Filho sempre foi e sempre será obediente ao Pai (João
10.17). E é esse amor que transborda em amor por nós, os filhos que estão
unidos a Cristo pela fé.
Precisamos
inculcar isso em nossas mentes enquanto discipuladores e conselheiros. Podemos
dizer “Deus ama você” o dia inteiro, e isso de nada adiantar, porque as pessoas
no fundo sabem que não merecem o amor de Deus. Mas, quando me é dito que Deus
ama a Cristo e que eu fui adotado em Cristo pela fé, agora eu tenho algo em que
pôr a minha confiança, algo que não contradiz o meu conhecimento de mim mesmo.
Cristão,
você é amado, não porque você é amável ou obediente, mas porque Cristo é amável
e obediente e você está em Cristo. Você foi adotado.
2.
Um filho glorifica o seu Pai ao representá-lo perante o mundo
Segundo,
o papel de um filho é dar glória ao seu Pai ao representá-lo perante o mundo.
Jesus fez essa afirmação acerca de sua própria vida repetidamente. João 5.19: o
Filho somente pode fazer “aquilo que vir fazer o Pai; porque tudo o que este
fizer, o Filho também semelhantemente o faz”. E tudo isso é para trazer glória
ao Pai. Como Jesus orou, “Eu te glorifiquei na terra, consumando a obra que me
confiaste para fazer” (João 17.4).
Mas
o que é verdade acerca de Cristo também é verdade acerca dos filhos que estão
em Cristo. Mateus 5.9: “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados
filhos de Deus”. Mateus 5.44-45: “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos
perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste”. Efésios 5.1:
“Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos amados”. Herdeiros de Deus devem
portar o nome do Pai e fazer avançar a reputação do Pai. Esse é um elevado
chamado e privilégio.
3.
O privilégio do Filho é uma herança segura
Terceiro, o
privilégio do Filho é uma herança segura. Jesus afirma isto: “O escravo não
fica sempre na casa; o filho, sim, para sempre” (João 8.35). Paulo assimila a
mesma idéia: “E, porque vós sois filhos, enviou Deus ao nosso coração o
Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai! De sorte que já não és escravo,
porém filho; e, sendo filho, também herdeiro por Deus” (Gálatas 4.6). Muito
mais do que uma experiência emocional e psicológica de amor, este versículo nos
promete uma herança e um lugar permanente na família. Essa herança é certa e
segura.
Que
é essa herança? A principal imagem no Antigo Testamento é de uma terra. Na era
presente, nós não recebemos uma terra, mas o Espírito. E, incrivelmente, o
Espírito é apenas um penhor. A nossa plena herança ainda nos aguarda, pois a
nossa plena herança é o próprio Deus Trino em uma nova criação perfeitamente
planejada para o nosso florescimento e a sua glória.
4.
A meta do Filho é a obediência
Quarto,
a meta do Filho é a obediência. Essa deveria ter sido a meta de Adão, de Israel
e de Davi. Mas foi, sem dúvida, a meta de Jesus. Ele foi obediente ao Pai até o
fim. Não foi uma obediência relutante, desejando que houvesse outro caminho.
Não foi uma obediência mesquinha, na esperança de que talvez o Pai lhe amasse
por obedecer. Não foi uma obediência orgulhosa, do tipo “Ei, olhe para mim!”.
Foi uma obediência voluntária – “eu espontaneamente a dou” (João 10.18). Foi
uma obediência confiante – “porque me amaste antes da fundação do mundo” (João
17.24). Foi uma obediência humilde – Jesus não se envergonha de nos chamar
irmãos (Hebreus 2.11). E essa obediência foi a sua alegria.
Quando
nós usamos a linguagem da filiação em nosso discipulado e aconselhamento, se
nós apenas transmitimos a promessa da intimidade e do livre acesso, que Romanos
8 ensina, então estamos contando apenas parte da história. Filhos não são
apenas os recipientes de amor, copos vazios de amor que precisam ser cheios.
Eles também são aqueles que ativamente amam seu Pai. E João nos diz: “E o amor
é este: que andemos segundo os seus mandamentos” (2 João 6).
Eu
poderia chegar ao ponto de dizer que o tema dominante vinculado à filiação no
Antigo Testamento e no Novo não é intimidade, acesso, afeição, nem mesmo
segurança. É obediência.
Tudo
se encaixa em Romanos 8. Deus nos predestinou para sermos conformes à
semelhança, à imagem do seu Filho, a fim de que ele fosse o primogênito entre
muitos irmãos (Romanos 8.29). E, portanto, Paulo diz, “Portanto, irmãos,
estamos em dívida, não para com a carne, para vivermos sujeitos a ela. Pois se
vocês viverem de acordo com a carne, morrerão; mas, se pelo Espírito fizerem
morrer os atos do corpo, viverão, porque todos os que são guiados pelo Espírito
de Deus são filhos de Deus” (Romanos 8.12-14, NVI). A meta dos filhos é a
obediência.
A
próxima coisa que Paulo diz é que pelo Espírito nós clamamos “Aba, Pai”
(Romanos 8.15). E assim o círculo se fecha. Intimidade e obediência andam lado
a lado na história do Filho.
Uma
nova história
Nós
vivemos numa era terapêutica, uma era de relacionamentos quebrados e famílias
fraturadas, em que pais são tolos, bufões, capatazes, ou apenas completamente
ausentes. Os filhos criam a si mesmos até a fase adulta por meio de imagens da
internet e da TV. Francamente, com as filhas é ainda pior. Então, não deveria
nos surpreender que, na linguagem bíblica de filhos e filhas, nós encontramos
um poderoso antídoto para um veneno mortal.
Mas,
de fato, em nossa identidade como filhos e filhas de Deus nós recebemos algo
muito mais poderoso do que um antídoto para os fracassos de nosso tempo.
Recebemos uma identidade que nos chama além de nós mesmos e de nossas
necessidades emocionais para o enredo da glória de Deus.
Um
dia, a nossa esperança será recompensada; a nossa obra terá um fim. “A ardente
expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus” (Romanos 8.19).
E essa expectativa não será frustrada. Naquele dia, uma nova história começará:
a história da gloriosa liberdade dos filhos e filhas de Deus.
Fonte: http://voltemosaoevangelho.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário