Capítulo 4 da série "Satisfação em Deus em meio ao sofrimento"
Após dezesseis anos na selva africana, David Livingstone (1813-1873) retornou a Londres como um herói no final de 1856. O médico escocês e missionário pioneiro havia passado o auge da vida enfrentando dificuldades físicas e escuridão espiritual. Em breve, ele voltaria em busca de mais.
Durante a licença, Livingstone explicou aos alunos de Cambridge por que havia deixado o conforto da Inglaterra para servir como missionário. Não tinha sido fácil, e ele reconheceu os custos: ansiedade, doença, sofrimento, perigos frequentes. Ele falou em “renunciar às conveniências e caridades comuns desta vida”. Mas insistiu que isso não era um sacrifício, mas um privilégio: “Nunca fiz um sacrifício”.
Nos anos seguintes, outros missionários, como Hudson Taylor (1832-1905), ecoariam esse testemunho. Homens e mulheres que manifestamente fizeram grandes sacrifícios pela causa do Evangelho alegariam que, no final, não se tratava de sacrifício algum. O ganho do sacrifício piedoso superava de tal forma a dor da obediência que, em retrospectiva, não parecia sacrificial. Os sacrifícios eram reais, mas o privilégio, muito maior.
O que os missionários de hoje — e maridos, pais, mães, pastores e amigos — podem aprender com essa abordagem sobre busca do prazer em Deus aos nossos dolorosos sacrifícios, grandes e pequenos?
Cordeiros Sacrificiais
O conceito bíblico de sacrifício começa com o cordeiro sem consentimento. Ninguém, é claro, se voluntariou para o ritual do culto ou entregou voluntariamente o pescoço à faca. O cordeiro não encontrou alegria ou senso de privilégio em seu abate. Foi agarrado contra a vontade e teve sua garganta cortada. Sua vida foi oferecida por seu dono, não pelo próprio cordeiro.
Este é o cenário impressionante contra o qual o Filho de Deus encarnado se ofereceu como o Cordeiro sacrificial. Ninguém agarrou Jesus sem o seu consentimento (João 10.18). Ele não foi coagido, enganado ou forçado ao altar. Em vez disso, ele se ofereceu voluntariamente, por seu próprio Espírito eterno (Hebreus 9.14). Ele escolheu a cruz com seus pregos e vergonha, não facilmente, mas genuinamente. Ele abraçou o sacrifício supremo, e o fez, como Livingstone faria um dia, com lucro em vista: “Porque a alegria que lhe estava proposta [Jesus] suportou a cruz” (Hebreus 12.2).
Ao fazê-lo, Jesus vivenciou o mesmo cálculo espiritual que havia ensinado, não apenas sobre abnegação e autossacrifício, mas especificamente sobre a cruz. A princípio, pode não soar hedonista: “Se alguém quer vir após mim, negue -se a si mesmo , tome cada dia a sua cruz e siga-me” (Lucas 9.23). Mas então ele explica o ganho que faz a abnegação e a perda valerem a pena:
Pois quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas quem perder a sua vida por minha causa, esse a salvará. Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder-se ou causar dano a si mesmo? (Lucas 9.24–25)
Alegrias Sacrificiais
Da mesma forma, Paulo, como porta-voz inspirado de Jesus, habitado pelo próprio Espírito de Jesus, expressa alegria surpreendente em seu doloroso sacrifício pelo bem de seus convertidos:
Ainda que eu seja derramado como oferta de bebida sobre o sacrifício da vossa fé, alegro-me e regozijo-me com todos vós. (Filipenses 2.17)
Dois sacrifícios estão em vista aqui. Primeiro, Paulo identifica a obediência dos filipenses como “a oferta sacrificial da vossa fé”. O povo de Deus não oferece mais animais abatidos como sacrifícios, como fazia na primeira aliança, mas oferece a si mesmo, tudo o que é, toda a sua vida, como “sacrifício vivo” (Romanos 12.1).
O segundo sacrifício é o próprio Paulo. Ele está preso em uma prisão romana por seus trabalhos de promoção do evangelho e diz: “Mesmo que eu morra aqui, eu me alegro”. Sua busca pela alegria na alegria dos outros o levou à prisão, e a alegria final será sua se ele nunca conseguir sair da prisão, pois anseia pela recompensa de estar com o próprio Cristo (Filipenses 1.21-23).
Assim, Paulo, como seu Senhor, abraça o sacrifício pelo bem dos outros, olhando além do custo do sacrifício doloroso para a sua recompensa. Além da dor imediata da perda, ele enxerga e começa a desfrutar o ganho eterno. Ele persevera pela alegria que lhe é proposta.
E mesmo que não estejamos sentados em uma prisão romana ou olhemos para uma cruz romana, nós, maridos, pais, mães, pastores e cristãos, aprendemos a olhar para o ganho que faz com que muitos sacrifícios pareçam nenhum sacrifício — e faz com que até mesmo o mais doloroso dos sacrifícios valha a pena.
Procurando por recompensa
A chave para a verdadeira alegria, mesmo em meio a um sacrifício doloroso, é ter um coração maior que o momento, um espírito maior que o sacrifício. Poderíamos chamar isso de fé. A fé enxerga o invisível que veio antes do momento e está além das circunstâncias imediatas, e a fé sente e age à luz dessa realidade maior e invisível.
A fé olha para a recompensa. O sacrifício em si é custoso, desconfortável e doloroso. Por si só, o ato de sacrifício não é desejável. Não é prazeroso, mas horrível, ir à cruz. Não é prazeroso, mas doloroso sentar-se acorrentado em uma prisão romana. Mas os olhos da fé, no coração habitado pelo Espírito, olham através e além da aflição presente, para a recompensa que virá da mão e da face do próprio Deus.
Em tal fé, o sacrifício em si não se torna menos doloroso, mas a promessa de alegria se expande para tornar a resistência à dor possível e até desejável. A fé sustentada pelo Espírito Santo olha para a recompensa vindoura e experimenta, mesmo agora, no momento do sacrifício, um pouco da plenitude da alegria que está por vir. Pode-se até ir mais longe, como Paulo, a ponto de dizer que a aflição, sem se tornar em si mesma menos dolorosa, é “leve” e “momentânea” em comparação com o “peso eterno de glória” que está por vir (2 Coríntios 4.17-18).
Alegria agora e muito mais por vir
O que encontramos em nosso Senhor, em seus apóstolos e em seus missionários é uma alegria dupla que nos sustenta em sacrifícios dolorosos. É a mesma alegria dupla que David Livingstone testemunhou.
A razão pela qual ele pôde dizer: “Eu nunca fiz um sacrifício” é que ele tinha duas alegrias em vista — ou uma alegria em duas manifestações preciosas. Ele olhava tanto para a alegria final, plena e não diluída que viria no fim, quanto para a alegria presente, real e sustentadora que ele começara a saborear pela fé, mesmo agora. Ele já testemunhava desfrutar de “recompensa abençoada, atividade saudável, a consciência de fazer o bem, paz de espírito” — e, além disso, ele tinha “brilhante esperança de um destino glorioso no além”. E com tanta alegria agora e alegria por vir, ele insistia: “Eu nunca fiz um sacrifício”.
E assim nós também enfrentamos as dores do sacrifício como aqueles que buscam o prazer em Deus, semelhantes a Cristo.
Por: David Mathis, é diretor executivo do desiringGod.org e pastor na Cities Church. É casado, pai de quatro filhos, e autor de Rich Wounds (2022).
Fonte: https://voltemosaoevangelho.com


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