Nos piores momentos de impiedade da minha vida, quando estava escravizado pelo pecado, eu acreditava tanto num tipo equivocado de amor divino, um amor engodado e subjugado, que não O considerava capaz de me condenar. Em minha loucura, achava que o Deus bondoso não poderia criar um lugar tão terrível como o descrito na Escritura, onde os pecadores fossem lançados e atormentados eternamente, “para o fogo que nunca se apaga, onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga” [Mc 9.43-44]. O meu coração estava tão corrompido pela autocompaixão, que o Seu amor era uma espécie de escudo protetor a me desobrigar de cumprir a Sua palavra, garantindo-me descumpri-la, e manter-me enredado no caminho pervertido. O objetivo era de que a minha iniquidade prevalecesse sobre o amor de Deus; era como o calço que equilibraria a mesa defeituosa e manca; uma muleta capaz de fazer o coxo se arrastar sem que seja curado do seu mal. Era preciso que eu anulasse a Sua justiça e, por conseguinte, o sacrifício de Cristo na cruz do Calvário, com a ideia perversa de um amor contemplativo e inútil, suficiente para me manter num coma irreversível.
É interessante como tudo se processa:
1) O conhecimento de Deus e de Sua Lei Moral, inatos em minha alma, revelavam-me os pecados, ainda que não os assumisse como tal.
2) Para justificá-los, apelava para o amor complacente, tolerante e conveniente, o qual julgava divino, quando não passava de uma tentativa desesperada de ser aprovado por Ele, sem a necessidade de arredar o pé da antiga vida de pecados.
3) Então suprimia o Inferno e qualquer tipo de condenação; acreditando que mesmo o diabo seria absolvido em nome desse suposto amor divino. No fundo, não passava de uma tentativa frustrada de demovê-lO da sua convicção, de considerá-lO volúvel e maleável, facilmente moldado por todo o meu coração perverso e estúpido.
4) Por fim, como a Escritura é categórica em relação ao julgamento de Satanás [e também do réprobo], optei pela sua não existência; e as citações escriturísticas não passavam de apelos morais à minha consciência, no sentido de o mal ser condenado e combatido na sociedade, sem que o pecador o seja. Desta forma, as criaturas tornavam-se mais importantes do que o Criador, e o projeto de santidade de Deus era uma mera obsessão ortodoxa, um delírio teológico legalista [1].
5) A expiação do Senhor, o tema central e corrente de toda a Escritura, passou a ter também um apelo meramente moral, no sentido de se buscar, seja na bondade, no serviço, na consciência, na integração social, o bem que há em nós e que sempre vencerá o mal. Somente desse modo a humanidade evoluirá por seus próprios meios, à sua maneira, até finalmente alcançar a perfeição [2].
Assim, progressivamente, vai-se afastando da revelação especial, em detrimento de uma “revelação pessoal”, na qual o ímpio conforta-se com a idéia de que tudo será perdoado, ainda que não seja necessário arrependimento, ainda que seja preservada a sua velha natureza, e a dissolução servisse de prêmio à desobediência, à leviandade, ao ignóbil pensamento de que se é possível “passar a perna em Deus”.
O novo-nascimento operado pelo Espírito Santo, primeiramente, nos revela a nossa condição imoral e iníqua. Sem a constatação do que somos, o reconhecimento de que estamos verdadeiramente perdidos e mortos para Deus, não há arrependimento nem salvação. Duvido do crente que diz que sempre foi crente. Por menor que seja o processo de regeneração, por mais tênue que seja a diferença entre a sua vida pregressa e a nova vida, há de se arrepender. Mesmo crentes nascidos em berços cristãos, cujos pais, avós e bisavós eram crentes, terão de se deparar mais cedo ou mais tarde com os seus pecados, sendo confrontados pela Palavra e o mover do Espírito em suas vidas. Ainda que se tenha lido a Bíblia muitas vezes, ouvido dezenas de pregações, e até se concluiu o seminário, o Evangelho não passará de construções gramaticais aos seus olhos e ouvidos, nada além de palavras e frases sucedendo-se sem sentido, ou quando muito, confundindo-o.
Porém, quando Deus o confronta com o texto bíblico e o Espírito Santo lhe revela a sua condição de rebelde, mostrando o seu estado miserável diante da santidade e glória divinas, não há como resistir: somos inapelavelmente abatidos em nossa soberba, nossos olhos são abertos, nossa mente é conformada à mente de Cristo, os joelhos se dobram, a cerviz se curva, e a escravidão do pecado é-nos arrancada, reconhecemos Cristo como Senhor, e somos eternamente salvos pelo Seu perfeito amor.
Então, qualquer tentativa de se minimizar o novo-nascimento como a transposição radical do reino das trevas para o Reino da luz, deve ser combatida. Nada é mais diabólico do que rejeitar o novo-nascimento, porque sem ele, o homem apenas será mantido no estado de impiedade, sustentando a inimizade contra Deus, a sua condição de caído em Adão, e a perpetuar a sua natureza carnal, conservando-se morto.
Sem a regeneração, não há salvação. Não adianta saber todos os versículos de cor, nem ter uma vida de aparente piedade, nem estar a serviço da igreja, nem dizimar e ofertar, nem participar da ceia, nem mesmo pregar a palavra. Deus pode usá-lo de várias maneiras [e o usará quer você queira ou não] e você pode até mesmo estar convencido de sua salvação, mas a sua fé não é por Cristo, mas em seus méritos próprios. E ninguém será justificado por obras de justiça própria; porque a sua fé não está nEle, mas em si mesmo, em seu esforço, e no grande cristão que você aparenta ser; nada disso surtirá algum efeito, a não ser condená-lo; ainda que se considere bom o suficiente para receber a misericórdia divina, quando, se não for lavado no sangue do Cordeiro, não poderá chegar diante do Seu trono alegando qualquer outra justificativa. A única que satisfaz o Todo-Poderoso é ser expiado por Cristo, e ser absolvido dos pecados pelo Seu sacrifício remidor.
Você não passa de um tolo! Não é salvo. Nunca foi. E continua sob a ira de Deus.
Se não houver aquele dia, em que numa ínfima fração de tempo você se viu como realmente é, e foi movido irresistivelmente pelo Espírito Santo a ser como Cristo, você ainda está morto em seus delitos e pecados. De nada adiantará espernear, alegar inocência, porque a obra de salvação é completamente de Deus, e o homem não pode auxiliá-lO em nada. Tudo é dEle para o eleito, o qual foi destinado para a vida eterna apenas pela Sua vontade. “Sabendo isto, que o nosso homem velho foi com ele crucificado, para que o corpo do pecado seja desfeito, para que não sirvamos mais ao pecado” [Rm 6.6].
O réprobo somente faz produzir provas contra si, infringindo a Lei Moral tantas vezes quanto a sua mente caída é capaz de se deleitar na malignidade.
Por isso, muitos se recusam a crer no Inferno e na condenação; por que não foram regenerados, e se não foram, como acomodar os seus pecados à Palavra? Não tem jeito. É impossível. Então usarão de artifícios para desqualificá-la, distorcê-la ou recriá-la. Ao idealizarem o paraíso, contentam-se em permanecer atolados no pântano como se fosse possível fazer dele um jardim sem remover toda a lama. Querem que brote flores no terreno estéril. Querem exalar o doce perfume de Cristo, quando estão apodrecendo. Querem-se vivos, quando estão mortos. Querem respirar, quando estão asfixiados. É como o cérebro sem oxigênio.
Assim é o ímpio.
O cadáver que a chuva molha.
Notas:
[1] Interessante que os liberais nos acusam de todo o tipo de distorção. Dizem que traçamos absolutos quando eles não existem. Dizem que levamos a Bíblia a uma literalidade doentia. Dizem que o propósito de Deus não é o de condenar ninguém. Dizem que a revelação especial foi construída por homens, e, portanto, está sujeita a falhas. Dizem que Deus deu apenas uma idéia geral do Seu plano, e que os homens acrescentaram e distorceram essa mensagem inicial. Dizem que a Bíblia não é divina, mas humana; e tem apenas bons exemplos morais, mas nada que leve a criatura à salvação ou condenação.
Eles proclamam uma cartilha de motivos para a sua impiedade, para manterem-se em conluio com o pecado, sem que haja qualquer prova concreta do que afirmam; nada além da mais simplória e débil especulação. Contrariamente, podemos afirmar que eles não passam de incrédulos, de crentes em uma fé distorcida e talhada à imagem dos seus deuses: eles mesmos e o diabo. E isso não é mera especulação. É o próprio Deus falando através da Bíblia, a revelação especial.
[2] A qual nada mais é do que a integração de todos os povos, raças e credos numa simbiose capaz de fazer com que a humanidade se unisse no projeto de construção do homem ideal. Isso significaria a união da luz com as trevas, do bem com o mal, do absoluto com o relativo, do fundamental com o dispensável, de Cristo com Belial, do santo com o profano, do incorruptível com o corrompido. Seria o mesmo que fundir água e óleo; e sabemos que eles não se confundem.
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