O texto a seguir foi retirado e traduzido do Comentário Bíblico
feito por João Calvino e joga uma forte luz sobre a pergunta tão frequentemente
direcionada aos calvinistas: Se Deus tem um decreto, isso não faz dEle o autor
do mal?
“Assim
não fostes vós que me enviastes para cá, senão Deus, que me tem posto por pai
de Faraó, e por senhor de toda a sua casa, e como regente em toda a terra do
Egito“. (Gênesis 45:8)
Esta é uma passagem que nos ensina que o curso dos
acontecimentos nunca é tão deturpado pela depravação e maldade dos homens, mas
que Deus pode direcioná-los a um bom fim. Também somos instruídos da maneira e
do propósito que devemos considerar a providência de Deus. Quando homens de
mentes inquisitivas discordam sobre isso, eles não só misturam e pervertem
todas as coisas sem considerar o fim designado, mas inventam toda espécie de
absurdo em seu poder, para suavizar a justiça de Deus. E esse tumulto faz com
que alguns homens piedosos e moderados desejem que esta parte da doutrina seja
escondida de nossa vista; Pois tão logo quanto é declarado publicamente que
Deus detém o governo do mundo inteiro e que nada é feito senão por Sua vontade
e autoridade, aqueles que pensam com pouca reverência sobre os mistérios de
Deus, abordam várias questões, não só de forma frívola, mas prejudicial. Mas,
como esta intemperança profana da mente deve ser restringida, então uma medida
justa deve ser observada, por outro lado, para não fomentar uma ignorância
grosseira das coisas que não apenas são claras na Palavra de Deus, mas são
extremamente úteis em seu conhecimento. Bons homens têm vergonha de confessar,
que o que os homens empreendem não pode ser realizado senão pela vontade de
Deus; temendo que línguas desenfreadas clamem imediatamente que Deus é o autor
do pecado, ou que os homens perversos não devam ser acusados de crime, visto
que apenas cumprem o conselho de Deus. Mas, embora essa fúria sacrílega não
possa ser efetivamente refutada, basta que a tenhamos como detestável.
Enquanto isso, é correto manter, o que é declarado
pelos testemunhos claros das Escrituras, que apesar das coisas que os homens
consigam, no entanto, em meio a todos os tumultos, Deus é que prevalece sobre
seus conselhos e tentativas; e, em suma, faz, pelas mãos dos homens, o que Ele
mesmo decretou. Bons homens, que temem expor a justiça de Deus às calúnias dos
ímpios, recorrem a esta distinção, que Deus quer algumas coisas, mas que outras
Ele apenas permite. Como se, verdadeiramente, qualquer grau de liberdade de
ação fosse deixado aos homens se Ele cessasse de governar. Se Ele tivesse
apenas permitido que José fosse levado ao Egito, Ele não haveria ordenado que
este fosse ministro de libertação para seu pai, Jacó, e seus filhos; ato tal
que está expressamente declarado na passagem. Afastados, então, dessa invenção
vã, que, somente com a permissão de Deus, e não por Seu conselho ou vontade, é
que esses males são cometidos, e que Ele depois os volta para um bom propósito.
Eu falo de males com respeito aos homens, que não propõem mais nada para si
além de agir perversamente. E, à medida que o vício habita neles, toda a culpa
deve ser colocada sobre eles. Mas Deus trabalha maravilhosamente por meio de
Seus meios, para que, da impureza dos homens, Ele produza a sua perfeita
justiça. Este método de atuação é secreto e muito acima do nosso entendimento.
Portanto, não é de se estranhar que a licenciosidade de nossa carne se aumente
contra ele. Mas tanto mais diligentemente devemos estar em nossa guarda, que
não tentemos reduzir esse alto padrão para a medida da nossa pequenez. Que este
sentimento permaneça fixo conosco, que enquanto a luxúria dos homens exulta, e
incessantemente os apressa de um lado para outro, Deus é o governante e, por
Sua rédea secreta, dirige os movimentos dos homens para onde quer. Ao mesmo
tempo, no entanto, também deve ser mantido, que Deus age tão distintamente
deles, que nenhum vício pode se unir a Sua providência e que Seus decretos não
têm afinidade alguma com os crimes dos homens. Esse modo de procedimento é
demonstrado no ilustre exemplo que é colocado diante de nossos olhos: José foi vendido
por seus irmãos; por qual razão se não pela inveja daqueles que desejavam, por
qualquer meio que fosse, arruiná-lo e aniquilá-lo? Ainda assim, a mesma obra é
atribuída a Deus, mas por um fim muito diferente; isto é, que em um tempo de
fome a família de Jacó pudesse ter um suprimento inesperado de comida. Por
isso, Ele quis que José parecesse como um que estivesse morto, por um curto
período de tempo, para que de repente Ele pudesse levantá-lo do túmulo, como o
salvador da vida. Por isso, embora pareça que, no começo, Ele faça o mesmo que
os ímpios, ainda assim há uma enorme distância entre as iniquidades dos homens
e o Seu julgamento admirável.
E, sem dúvida, deve ser mantido que as ações dos
homens não devem ser avaliadas de acordo com o evento em si, mas de acordo com
a medida que eles podem ter falhado em seu dever, ou em ter tentado algo
contrário à Ordem Divina e ultrapassado os limites de suas vocações.
Portanto, aqueles cujas consciências os acusam do mal, não têm nenhuma vantagem
na pretensão de que a providência de Deus os exonerou da culpa. Mas, por outro
lado, sempre que o Senhor se interpõe para evitar o mal daqueles que desejam
nos causar dano, e não só isso, mas transforma seus maus planos em algo que
resulta em nosso próprio bem, Ele subjuga, por esse método, nossas afeições
carnais, e nos torna mais justos e mais suaves. Assim, vemos que José era um
hábil intérprete da providência de Deus, uma vez que ele construiu um argumento
baseado nela para conceder perdão a seus irmãos. A magnitude do crime cometido
contra ele poderia fazer com que ele fosse consumido com o desejo de vingança:
mas quando ele reflete que os efeitos da maldade de seus irmãos haviam sido
anulados pela maravilhosa e inusitada bondade de Deus, esquecendo-se do dano recebido,
ele gentilmente abraça os homens cuja desonra Deus cobriu com a Sua graça. E
verdadeiramente a caridade é engenhosa ao esconder as faltas dos irmãos e,
portanto, ela aplica livremente a esse uso qualquer coisa que possa tender a
apaziguar a ira e a acabar com inimizades.
Tradução/adaptação:
Erving Ximendes
Nenhum comentário:
Postar um comentário