Ao anjo da
igreja em Laodicéia escreve: Estas coisas diz o Amém, a testemunha fiel e
verdadeira, o princípio da criação de Deus (Ap.3:14 ARA)
O livro de
Apocalipse, como se sabe, é um livro cheio de símbolos e termos figurados, dos
quais alguns são aplicados a Cristo. Vemos nesse verso Cristo ser chamado de
Amém, algo que não acontece em nenhum outro lugar no NT. Ele também é chamado
de Alfa e Ômega, entre outros títulos que recebe.
Mas o que
podemos dizer da expressão “o princípio da criação de Deus“? Será que o
Apóstolo João quer com isso dizer que Cristo é a primeira criatura de Deus? Na
obra Estudo Perspicaz nós encontramos a seguinte afirmação:
A primeira
criação de Jeová foi seu “Filho unigênito” (Jo 3:16), “o princípio da criação
de Deus”. (Re 3:14) Este, “o primogênito de toda a criação”, foi usado por
Jeová na criação de todas as outras coisas, as nos céus e as na terra, “as
coisas visíveis e as coisas invisíveis”. (Col 1:15-17) (Estudo Perspicaz, Vol.1,
p.583).
Para a Sociedade
Torre da Vigia (STV) a expressão “princípio da criação de Deus”
significa que Jesus teria sido criado por Deus para ser o criador de todas as
outras coisas[1]. Mas, será que essa conclusão está correta? A resposta é
não por três motivos: (1) Por que o texto diz princípio da criação e
não primeira criação; (2) Por que o texto diz criação e não criatura;
(3) Por que o uso da expressão princípio da criação nas escrituras
exclui a possibilidade de que esse texto seja entendido como primeira
criatura.
Um princípio
hermenêutico fundamental para se interpretar as escrituras é observar
atentamente o que a escritura diz. E, é isso que pretendemos aqui quando
analisamos esse verso.
1. A diferença entre princípio
da criação e primeira criação
Observe que
o texto não diz que Cristo é a primeira criação, mas princípio.
Em grego João utiliza o termo ἀρχή (arche) que
em nenhum lugar no Novo Testamento é usado no sentido de “primeiro“. O termo grego normalmente usado para descrever
primeiro é πρωτός (prötós), e eventualmente, o mesmo sentido é auferido com o
termo εἷς (eis; cf. Mt.28.1; Lc.24.1; Tt.3.10;
Ap.9.12). Segue-se que seria equivocado inferir que o termo ἀρχή significa nesse texto que Cristo é a primeira criação.
2. A diferença entre criação
e criatura
Outra
observação importante a ser feita no texto é que ele não diz que Jesus é a
primeira criatura, mas princípio da criação. O termo grego κτίσις
(ktísis) é normalmente usado para descrever o ato da criação (Rm.1.20) ou a
criação como um todo (Mc.10.6; 13.19; Rm.8.19, 20, 21, 22; Cl.1.15, 23;
Hb.9.11; 2Pe.3.4) em contraste com o Criador (Rm.1.25)[2]. Entretanto, o termo mais comum no NT para descrever
criatura é κτίσμα (ktísma; cf. 1Tm.4.4; Tg.1.18; Ap.5.13; 8.9[3]), que não é usado em Ap.3.14.
3. A expressão princípio
da criação no NT
Outra
observação que devemos fazer é que a expressão ἡ ἀρχὴ τῆς κτίσεως (he arche tes ktíseös) é usada outras vezes no NT e nunca carrega o sentido de primeira
criatura, mas sempre aponta para o início da criação. Em Mc.10.6 nós lemos:
“porém, desde o princípio da criação, Deus os fez homem e mulher”. Nesse
caso é evidente que o uso da expressão princípio da criação (ἀρχῆς κτίσεως) nada tem a
ver com a ideia de uma primeira criatura (cf. Mc.13.19). Em 2Pe.3.4,
vemos algo similar: “Porque, desde que os pais dormiram, todas as coisas
permanecem como desde o princípio da criação“. Novamente, a
expressão princípio da criação (ἀρχῆς κτίσεως) não pode significar primeira criatura.
A bem da
verdade, uma expressão similar poderia ser usada para descrever o sentido
esperado pela STV, como acontece no livro apócrifo de Eclesiástico 36.17 [LXX
36.14], que segundo a Bíblia Ave Maria, deveria ser assim traduzido: “Dai
testemunho em favor daqueles que são vossas criaturas desde a origem“.
Entretanto, é possível que o texto grego aqui pudesse ser vertido como: “Testemunhe
em favor das suas primeiras criaturas” (tradução pessoal). Nesse texto, o
autor usa uma expressão similar àquela encontrada em Ap.3.14, entretanto usa o
substantivo κτίσμα (ktísma – criatura) no plural, ao invés de κτίσις (ktísis –
criação) no singular. Em outras palavras, ainda que fosse possível que tal
expressão carregasse o sentido esperado pela STV[4], é altamente improvável que esse seja esse o sentido de
Ap.3.14.
Tendo
observado atentamente o texto de Ap.3.14, nós concluímos que o sentido do texto
deve ser princípio da criação e não primeira criatura pelas
razões supracitadas. Entretanto, nós devemos ainda nos perguntar: Em que
sentido Cristo é o princípio da criação?
4. Em que sentido Cristo é
o princípio da criação?
Em primeiro
lugar, devemos observar que a expressão está sendo usada
como um título e não como uma descrição. Em Apocalipse João
apresenta diversos títulos de Cristo, observe 1.5: “[revelação] da parte de
Jesus Cristo, a Fiel Testemunha, o Primogênito dos mortos e o Soberano dos
reis da terra“. O texto grego é interessante e segue a tradução em
português: cada título acrescido é apresentado com o uso do artigo grego (ὁ μάρτυς, ὁ πιστός, ὁ πρωτότοκος τῶν νεκρῶν καὶ ὁ ἄρχων τῶν βασιλέων τῆς γῆς – ho martus, ho pistós, ho prötótokos, tön nekrön kai ho
archen tön basiléön tes ges).
O mesmo
fenômeno acontece em Ap.3.14: “o Amém, a testemunha fiel e verdadeira, o
princípio da criação de Deus”. Como acontece em 1.5, cada vez que um novo
título é acrescido, João coloca o artigo grego (ὁ Ἀμήν, ὁ μάρτυς ὁ πιστὸς καὶ ἀληθινός, ἡ ἀρχὴ τῆς κτίσεως τοῦ θεου – ho amén, ho martus
ho pistós kai alëthinós, he arché tës ktíseös tou
theou). Com isso queremos dizer que João não está a
descrever a Cristo, mas está apresentando os títulos que
possui.
Em segundo
lugar, observe que em nenhum lugar no NT o termo Amém é
usado para descrever alguém, mas sempre para descrever uma forte afirmação (concordância)
com aquilo que é dito (Mt.6.13; Rm.1.25; 9.5; 11.36; Gl.1.5; Ef.3.21; Fp.4.20;
Hb.13.21; 1Pe.4.11; 5.11; Ap.1.6; 7.12). Das 129 vezes que o termo é usado em
todo o NT, apenas em Ap.3.14 ele é usado como descrição de alguém, nesse caso
Cristo. O que faz desse uso especial é o uso do artigo grego no nominativo,
masculino e singular[5], apontando que o substantivo aqui é usado em aposição aos
outros títulos, portanto, um título exclusivo de Cristo. No AT, entretanto, o
termo hebraico Amem é usado para descrever a Yahweh, e tal expressão foi
entendida na LXX como “O Deus Verdadeiro” (Is.64.16: τὸν θεὸν τὸν ἀληθινόν – ton theon ton alëthinon). Talvez o sentido aqui seja uma referência a Cristo como “O Verdadeiro” em analogia
com a etimologia do AT.
Em terceiro
lugar, algo similar acontece com o termo princípio, pois
não encontramos fora do livro de Apocalipse o termo articulado no nominativo
como uma referência pessoal. É possível, entretanto, encontrar o termo em
referência a alguém revestido de autoridade, como um governador (Lc.20.20;
cf. Lc.12.11 governadores – ARA), àqueles que governam (Tt.3.1), ou até
mesmo a autoridades espirituais de modo genérico (Rm.8.38 – potestades; cf. 1Co.15.24;
Ef.1.21; 3.10; 6.12; Cl.1.16; 2.10, 15). Esse sentido do texto é também normal
e poderia se encaixar perfeitamente no contexto de Apocalipse.
Entretanto,
a expressão ἡ ἀρχὴ (he arché) em referência à Cristo acontece mais duas vezes no próprio livro de Apocalipse. Em 21.6 nós lemos: “Eu sou o
Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim“. Cristo é
apresentado com aquele que é O Princípio e que é O Fim. Nada existe antes dele,
nem depois dele haverá. É por isso que em 22.13 nós lemos: “Eu sou o Alfa e
o Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim“. A mesma construção de
21.6 com o acréscimo da expressão: Primeiro e Último. Essas expressões
utilizadas como títulos, afirma que Cristo é aquele que é O Primeiro e aquele
que é O Último, clarificando o sentido das expressões O Alfa e Ômega e O
Princípio e Fim. Nenhuma linguagem é mais contrária a ideia de que Cristo é criado
do que a de Apocalipse. Se ele fosse uma criatura, jamais poderia ser o
primeiro, ele seria na melhor das hipóteses o segundo.
Portanto, a expressão ἡ ἀρχὴ τῆς κτίσεως (he arche tes ktíseös) deve ser
entendida em conformidade com a etimologia do termo dentro do contexto de
Apocalipse. Em outras palavras, estamos dizendo que a expressão ἡ ἀρχὴ (he arché) aqui também denota o conceito normal apresentado no NT, em referência ao princípio da criação. Isso pode
denotar dois sentidos:
1.
Originador: Em Apocalipse o termo é usado como um título dado a Cristo. Isso implica
que Cristo é o princípio da criação no sentido de que Ele é o Originador
da criação[6]. Ou melhor, que Cristo é aquele que inicia a criação, pois
ele é O princípio da criação. Esse uso está em completa
conformidade com o uso do termo nesse contexto e com a teologia de João, que
afirma que sem Cristo nada do que foi criado veio a existir (Jo.1.3).
2.
Soberano: Em Apocalipse é possível que o termo ἡ ἀρχὴ (he arché – o princípio) seja
usado a Cristo de modo paralelo a ὁ ἄρχων (hó archon – o soberano) em descrição daquele que tem autoridade sobre a criação. Esse uso está em conformidade com o contexto de Apocalipes (Ap.1.5) e com o
testemunho da escritura de que Cristo exerce autoridade sobre a criação
(Hb.1.2-3).
A primeira
opção reflete a tradução da ARA. A segunda da NVI. Particularmente, acredito
que o primeiro sentido se conforma mais adequadamente com a terminologia da
expressão, com o contexto de Apocalipse e com a Teologia de João. A tentativa
de equiparar ἡ ἀρχὴ (he arché) com ὁ ἄρχων (hó archon) é apenas justificada teologicamente. Seria mais
interessante, e talvez mais honesto, assumir o sentido de autoridade que o
próprio termo carrega (cf. Lc.20.20; Lc.12.11; Tt.3.1; Rm.8.38;
1Co.15.24; Ef.1.21; 3.10; 6.12; Cl.1.16; 2.10, 15). Entretanto, o contexto
não parece apontar para esse sentido aqui.
O sentido
normal do termo ἀρχὴ (arché) como princípio melhor se ajusta à interconexão morfo-sintática e contextual. Reforça essa ideia o fato de que a expressão τῆς κτίσεως (tes ktíseös – da criação) pode ser identificado como um genitivo
subjetivo, que é usado para
expressar o objeto ou complemento da ideia verbal do substantivo a que se
relaciona[7]. Em outras palavras, a expressão [Aquele que é] O
princípio da criação” pode ser entendido como Aquele que inicia a
criação. Sendo assim, Cristo é aquele que inicia a criação[8].
Portanto,
devemos concluir que a proposta da STV é mais uma inserção teológica no texto
de Apocalipse, do que uma tradução honesta do mesmo. Considerando atentamente
ao texto e aos termos usados, concluímos que o sentido proposto nesse verso
indica que Cristo é o Originador da Criação.
NOTAS
[1] Observe que nessa explicação o termo outras foi
inserido no texto de Col.1.15, para favorecer a opinião da STV sobre a criação
de Jesus Cristo. Em outras palavras, o termo outras não faz parte do texto
original de Cl.1.15. Para uma análise desse texto visite o artigo Como assim
[outras] coisas? publicado no Teologando.
[2] Embora κτίσις eventualmente também seja usado como o
resultado da criação, isto é, a criatura (Mc.16.15; Rm.8.39; 2Co.5.17;
Hb.4.13), ele o é apenas quando o contexto assim exige.
[3] Na LXX o termo é usado em 3Mac.5.11; Sabedoria 9.2; 14.11;
Eclesiástico 38.34, e em todas as vezes o sentido é de criatura não criação.
[4] Embora não seja a opção defendida pelo BDAG (p.138,
s.v.3), os editores afirmam que o sentido de “primeira criatura” em Ap.3.14 é
provável. O paralelo para essa afirmação é o texto grego de Jó.40.19: ” τοῦτ᾽ ἔστιν ἀρχὴ πλάσματος κυρίου –
tout’ estin arche plasmatos kyriou – Este é o princípio da criação
do Senhor). Contextualmente, o texto fala sobre a origem do behemoth,
traduzido pela ARA como hipopótamo (Jo.40.15). Nesse texto, e nesse contexto, é
possível que do sentido de ἀρχὴ (arché) possa se inferir o conceito de primeiro. Entretanto, as mais
importantes traduções da LXX não usam esse sentido para esse texto nesse
contexto. A tradução de C.Benton
usa o conceito de “Chefe [cabeça] da Criação”, bem como a New English
Translation of the Septuagint. O que é possível, entretanto, é
que Jó use a expressão aqui em referência à Gn.1.24, que descreve que behema
(i.e. gado) como primeira criatura. Se esse é o pano de fundo
conceitual, então a tradução é possível.
[5] Contraste isso com 1Co.14.16 e 2Co.1.20, nos quais o
artigo (anafórico) é usado com o artigo nominativo, neutro e singular.
[6] Observe que o léxico BDAG (p.138, s.v.6) define que Cristo
é a causa primária da criação. Entretanto, a expressão, por ser altamente
filosófica, poderia levar alguém a não usá-la. Portanto, optamos aqui pelo
termo incomum Originador, com a intenção de apresentar aquele que é o
responsável pelo início.
[7] BDF §170-178; Wallace, Greek Grammar Beyond the Basics,
p.112-121, especialmente, p.116-119; Smyth §1339; Moulton-Turner, A Grammar
of the New Testament, p.72; Alexander Buttmann, A Grammar of the New
Testament Greek, p.154-157;
[8] Esse sentido está em completa consonância com a literatura
judaica de sabedoria que usa ἀρχὴ (arche) como sinônimo de αἰτία (origem).
Fonte: http://marceloberti.wordpress.com/2013/08/13/em-que-sentido-jesus-e-o-principio-da-criacao/#comment-1295
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