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quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Em que sentido Jesus é o princípio da Criação?

Ao anjo da igreja em Laodicéia escreve: Estas coisas diz o Amém, a testemunha fiel e verdadeira, o princípio da criação de Deus (Ap.3:14 ARA)
O livro de Apocalipse, como se sabe, é um livro cheio de símbolos e termos figurados, dos quais alguns são aplicados a Cristo. Vemos nesse verso Cristo ser chamado de Amém, algo que não acontece em nenhum outro lugar no NT. Ele também é chamado de Alfa e Ômega, entre outros títulos que recebe.
Mas o que podemos dizer da expressão “o princípio da criação de Deus“? Será que o Apóstolo João quer com isso dizer que Cristo é a primeira criatura de Deus? Na obra Estudo Perspicaz nós encontramos a seguinte afirmação:
A primeira criação de Jeová foi seu “Filho unigênito” (Jo 3:16), “o princípio da criação de Deus”. (Re 3:14) Este, “o primogênito de toda a criação”, foi usado por Jeová na criação de todas as outras coisas, as nos céus e as na terra, “as coisas visíveis e as coisas invisíveis”. (Col 1:15-17) (Estudo Perspicaz, Vol.1, p.583).
Para a Sociedade Torre da Vigia (STV) a expressão “princípio da criação de Deus” significa que Jesus teria sido criado por Deus para ser o criador de todas as outras coisas[1]. Mas, será que essa conclusão está correta? A resposta é não por três motivos: (1) Por que o texto diz princípio da criação e não primeira criação; (2) Por que o texto diz criação e não criatura; (3) Por que o uso da expressão princípio da criação nas escrituras exclui a possibilidade de que esse texto seja entendido como primeira criatura.
Um princípio hermenêutico fundamental para se interpretar as escrituras é observar atentamente o que a escritura diz. E, é isso que pretendemos aqui quando analisamos esse verso.
1. A diferença entre princípio da criação e primeira criação
Observe que o texto não diz que Cristo é a primeira criação, mas princípio. Em grego João utiliza o termo ρχή (arche) que em nenhum lugar no Novo Testamento é usado no sentido de primeiro“. O termo grego normalmente usado para descrever primeiro é πρωτός (prötós), e eventualmente, o mesmo sentido é auferido com o termo ες (eis; cf. Mt.28.1; Lc.24.1; Tt.3.10; Ap.9.12). Segue-se que seria equivocado inferir que o termo ρχή significa nesse texto que Cristo é a primeira criação.
2. A diferença entre criação e criatura
Outra observação importante a ser feita no texto é que ele não diz que Jesus é a primeira criatura, mas princípio da criação. O termo grego κτίσις (ktísis) é normalmente usado para descrever o ato da criação (Rm.1.20) ou a criação como um todo (Mc.10.6; 13.19; Rm.8.19, 20, 21, 22; Cl.1.15, 23; Hb.9.11; 2Pe.3.4) em contraste com o Criador (Rm.1.25)[2]. Entretanto, o termo mais comum no NT para descrever criatura é κτίσμα (ktísma; cf. 1Tm.4.4; Tg.1.18; Ap.5.13; 8.9[3]), que não é usado em Ap.3.14.
3. A expressão princípio da criação no NT
Outra observação que devemos fazer é que a expressão ρχ τς κτίσεως (he arche tes ktíseös) é usada outras vezes no NT e nunca carrega o sentido de primeira criatura, mas sempre aponta para o início da criação. Em Mc.10.6 nós lemos: “porém, desde o princípio da criação, Deus os fez homem e mulher”. Nesse caso é evidente que o uso da expressão princípio da criação (ρχς κτίσεως) nada tem a ver com a ideia de uma primeira criatura (cf. Mc.13.19). Em 2Pe.3.4, vemos algo similar: “Porque, desde que os pais dormiram, todas as coisas permanecem como desde o princípio da criação“.  Novamente, a expressão princípio da criação (ρχς κτίσεως) não pode significar primeira criatura.
A bem da verdade, uma expressão similar poderia ser usada para descrever o sentido esperado pela STV, como acontece no livro apócrifo de Eclesiástico 36.17 [LXX 36.14], que segundo a Bíblia Ave Maria, deveria ser assim traduzido: “Dai testemunho em favor daqueles que são vossas criaturas desde a origem“. Entretanto, é possível que o texto grego aqui pudesse ser vertido como: “Testemunhe em favor das suas primeiras criaturas” (tradução pessoal). Nesse texto, o autor usa uma expressão similar àquela encontrada em Ap.3.14, entretanto usa o substantivo κτίσμα (ktísma – criatura) no plural, ao invés de κτίσις (ktísis – criação) no singular. Em outras palavras, ainda que fosse possível que tal expressão carregasse o sentido esperado pela STV[4], é altamente improvável que esse seja esse o sentido de Ap.3.14.
Tendo observado atentamente o texto de Ap.3.14, nós concluímos que o sentido do texto deve ser princípio da criação e não primeira criatura pelas razões supracitadas. Entretanto, nós devemos ainda nos perguntar: Em que sentido Cristo é o princípio da criação?
4. Em que sentido Cristo é o princípio da criação?
Em primeiro lugar, devemos observar que a expressão está sendo usada como um título e não como uma descrição. Em Apocalipse João apresenta diversos títulos de Cristo, observe 1.5: “[revelação] da parte de Jesus Cristo, a Fiel Testemunha, o Primogênito dos mortos e o Soberano dos reis da terra“. O texto grego é interessante e segue a tradução em português: cada título acrescido é apresentado com o uso do artigo grego ( μάρτυς, πιστός, πρωτότοκος τν νεκρν κα ρχων τν βασιλέων τς γς ho martus, ho pistós, ho prötótokos, tön nekrön kai ho archen tön basiléön tes ges).
O mesmo fenômeno acontece em Ap.3.14: “o Amém, a testemunha fiel e verdadeira, o princípio da criação de Deus”. Como acontece em 1.5, cada vez que um novo título é acrescido, João coloca o artigo grego ( μήν, μάρτυς πιστς κα ληθινός, ρχ τς κτίσεως το θεου ho amén, ho martus ho pistós kai alëthinós, he arché tës ktíseös tou theou). Com isso queremos dizer que João não está a descrever a Cristo, mas está apresentando os títulos que possui.
Em segundo lugar, observe que em nenhum lugar no NT o termo Amém é usado para descrever alguém, mas sempre para descrever uma forte afirmação (concordância) com aquilo que é dito (Mt.6.13; Rm.1.25; 9.5; 11.36; Gl.1.5; Ef.3.21; Fp.4.20; Hb.13.21; 1Pe.4.11; 5.11; Ap.1.6; 7.12). Das 129 vezes que o termo é usado em todo o NT, apenas em Ap.3.14 ele é usado como descrição de alguém, nesse caso Cristo. O que faz desse uso especial é o uso do artigo grego no nominativo, masculino e singular[5], apontando que o substantivo aqui é usado em aposição aos outros títulos, portanto, um título exclusivo de Cristo. No AT, entretanto, o termo hebraico Amem é usado para descrever a Yahweh, e tal expressão foi entendida na LXX como “O Deus Verdadeiro” (Is.64.16: τν θεν τν ληθινόν ton theon ton alëthinon). Talvez o sentido aqui seja uma referência a Cristo como O Verdadeiro em analogia com a etimologia do AT.
Em terceiro lugar, algo similar acontece com o termo princípio, pois não encontramos fora do livro de Apocalipse o termo articulado no nominativo como uma referência pessoal. É possível, entretanto, encontrar o termo em referência a alguém revestido de autoridade, como um governador (Lc.20.20; cf. Lc.12.11 governadores – ARA), àqueles que governam (Tt.3.1), ou até mesmo a autoridades espirituais de modo genérico (Rm.8.38 – potestades; cf. 1Co.15.24; Ef.1.21; 3.10; 6.12; Cl.1.16; 2.10, 15). Esse sentido do texto é também normal e poderia se encaixar perfeitamente no contexto de Apocalipse.
Entretanto, a expressão ρχ (he arché) em referência à Cristo acontece mais duas vezes no próprio livro de Apocalipse. Em 21.6 nós lemos: Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim“. Cristo é apresentado com aquele que é O Princípio e que é O Fim. Nada existe antes dele, nem depois dele haverá. É por isso que em 22.13 nós lemos: “Eu sou o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim“. A mesma construção de 21.6 com o acréscimo da expressão: Primeiro e Último. Essas expressões utilizadas como títulos, afirma que Cristo é aquele que é O Primeiro e aquele que é O Último, clarificando o sentido das expressões O Alfa e Ômega e O Princípio e Fim. Nenhuma linguagem é mais contrária a ideia de que Cristo é criado do que a de Apocalipse. Se ele fosse uma criatura, jamais poderia ser o primeiro, ele seria na melhor das hipóteses o segundo.
Portanto, a expressão ρχ τς κτίσεως (he arche tes ktíseös) deve ser entendida em conformidade com a etimologia do termo dentro do contexto de Apocalipse. Em outras palavras, estamos dizendo que a expressão ρχ (he arché) aqui também denota o conceito normal apresentado no NT, em referência ao princípio da criação. Isso pode denotar dois sentidos:
1.  Originador: Em Apocalipse o termo é usado como um título dado a Cristo. Isso implica que Cristo é o princípio da criação no sentido de que Ele é o Originador da criação[6]. Ou melhor, que Cristo é aquele que inicia a criação, pois ele é O princípio da criação. Esse uso está em completa conformidade com o uso do termo nesse contexto e com a teologia de João, que afirma que sem Cristo nada do que foi criado veio a existir (Jo.1.3).
2.  Soberano: Em Apocalipse é possível que o termo ρχ (he arché o princípio) seja usado a Cristo de modo paralelo a ρχων (hó archon o soberano) em descrição daquele que tem autoridade sobre a criação. Esse uso está em conformidade com o contexto de Apocalipes (Ap.1.5) e com o testemunho da escritura de que Cristo exerce autoridade sobre a criação (Hb.1.2-3).
A primeira opção reflete a tradução da ARA. A segunda da NVI. Particularmente, acredito que o primeiro sentido se conforma mais adequadamente com a terminologia da expressão, com o contexto de Apocalipse e com a Teologia de João. A tentativa de equiparar ρχ (he arché) com ρχων (hó archon) é apenas justificada teologicamente. Seria mais interessante, e talvez mais honesto, assumir o sentido de autoridade que o próprio termo carrega (cf. Lc.20.20; Lc.12.11; Tt.3.1; Rm.8.38; 1Co.15.24; Ef.1.21; 3.10; 6.12; Cl.1.16; 2.10, 15). Entretanto, o contexto não parece apontar para esse sentido aqui.
O sentido normal do termo ρχ (arché) como princípio melhor se ajusta à interconexão morfo-sintática e contextual. Reforça essa ideia o fato de que a expressão τς κτίσεως (tes ktíseös da criação) pode ser identificado como um genitivo subjetivo, que é usado para expressar o objeto ou complemento da ideia verbal do substantivo a que se relaciona[7]. Em outras palavras, a expressão  [Aquele que é] O princípio da criação” pode ser entendido como Aquele que inicia a criação. Sendo assim, Cristo é aquele que inicia a criação[8].
Portanto, devemos concluir que a proposta da STV é mais uma inserção teológica no texto de Apocalipse, do que uma tradução honesta do mesmo. Considerando atentamente ao texto e aos termos usados, concluímos que o sentido proposto nesse verso indica que Cristo é o Originador da Criação.
NOTAS


[1] Observe que nessa explicação o termo outras foi inserido no texto de Col.1.15, para favorecer a opinião da STV sobre a criação de Jesus Cristo. Em outras palavras, o termo outras não faz parte do texto original de Cl.1.15. Para uma análise desse texto visite o artigo Como assim [outras] coisas? publicado no Teologando.
[2] Embora κτίσις eventualmente também seja usado como o resultado da criação, isto é, a criatura (Mc.16.15; Rm.8.39; 2Co.5.17; Hb.4.13), ele o é apenas quando o contexto assim exige.
[3] Na LXX o termo é usado em 3Mac.5.11; Sabedoria 9.2; 14.11; Eclesiástico 38.34, e em todas as vezes o sentido é de criatura não criação.
[4] Embora não seja a opção defendida pelo BDAG (p.138, s.v.3), os editores afirmam que o sentido de “primeira criatura” em Ap.3.14 é provável. O paralelo para essa afirmação é o texto grego de Jó.40.19: ” τοτ στιν ρχ πλάσματος κυρίου – tout’ estin arche plasmatos kyriou – Este é o princípio da criação do Senhor). Contextualmente, o texto fala sobre a origem do behemoth, traduzido pela ARA como hipopótamo (Jo.40.15). Nesse texto, e nesse contexto, é possível que do sentido de ρχ (arché) possa se inferir o conceito de primeiro. Entretanto, as mais importantes traduções da LXX não usam esse sentido para esse texto nesse contexto. A tradução de C.Benton usa o conceito de “Chefe [cabeça] da Criação”, bem como a New English Translation of the Septuagint. O que é possível, entretanto, é que Jó use a expressão  aqui em referência à Gn.1.24, que descreve que behema (i.e. gado) como primeira criatura. Se esse é o pano de fundo conceitual, então a tradução é possível.
[5] Contraste isso com 1Co.14.16 e 2Co.1.20, nos quais o artigo (anafórico) é usado com o artigo nominativo, neutro e singular.
[6] Observe que o léxico BDAG (p.138, s.v.6) define que Cristo é a causa primária da criação. Entretanto, a expressão, por ser altamente filosófica, poderia levar alguém a não usá-la. Portanto, optamos aqui pelo termo incomum Originador, com a intenção de apresentar aquele que é o responsável pelo início.
[7] BDF §170-178; Wallace, Greek Grammar Beyond the Basics, p.112-121, especialmente, p.116-119; Smyth §1339; Moulton-Turner, A Grammar of the New Testament, p.72; Alexander Buttmann, A Grammar of the New Testament Greek, p.154-157;

[8] Esse sentido está em completa consonância com a literatura judaica de sabedoria que usa ρχ (arche) como sinônimo de ατία (origem).
Fonte: http://marceloberti.wordpress.com/2013/08/13/em-que-sentido-jesus-e-o-principio-da-criacao/#comment-1295

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