Richard B. Gaffin, Jr.
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto
No sexto dia, Deus contemplou sua obra finalizada em seu vasto esplendor e viu que era “muito bom” (Gn. 1:31). Mas ele não tinha visto ainda o “melhor”. Isso porque mesmo antes dele criar, Deus tinha decretado que “o melhor de todos os mundos possíveis” não seria no princípio, mas sim no final da história. Esse, também, foi o motivo dele ter criado Adão e Eva para serem portadores de sua imagem – dar-lhes o privilégio e responsabilidade, única entre suas criaturas, de trabalhar para o seu Criador-Senhor e trazer a criação à sua consumação pretendida.
Nossos primeiros pais, contudo, mostraram-se servos infiéis e inúteis, e o resto é história – a história triste e calamitosa da pecaminosidade humana e a justa ira e maldição de Deus sobre esse pecado. “Mas, onde o pecado abundou, superabundou a graça” (Rm. 5:20). Em sua ira, Deus lembrou da misericórdia (Habacuque 3:2). Deus propôs, a despeito do pecado, não abandonar a criação. Ele propôs salvar um povo para si. Ele enviou seu Filho unigênito para ser o novo, “último Adão” (1Co. 15:45, 47). Por sua vida, morte, ressurreição e ascensão, ele não somente cancelou a condenação que nós pecadores mereciam, mas também assegurou a realização dos propósitos originais de Deus para toda a criação. Como “o cabeça sobre todas as coisas para a igreja” (Ef. 1:22, versão do autor), ele está no presente trabalhando, por seu Espírito, para a realização plena daqueles propósitos em seu retorno. Então, quando apresentar os novos céus e nova terra em sua perfeição final e inabalável (Hb. 12:26-28), ele verá de fato o “melhor”.
Qual é a relação, você pode estar se perguntando, de tudo isso com o Shabbath? “Muita, em toda a maneira” (tomando emprestada a expressão de Romanos 3:2). Sem dúvida no livro de Hebreus, por exemplo, Deus deixa claro que quer que apreciemos a profunda ligação entre o escopo abrangente da religião cristã, que acabou de ser delineada, e a nossa guarda semanal do Dia do Senhor. Na longa passagem de Hebreus 3:7-4:13, ele está tentando dar aos cristãos do Novo Testamento um senso de sua identidade básica: eles são viajantes; a igreja é um povo peregrino. Ele estabelece o seu ponto, ao comentar o Salmo 95:7-11, comparando a igreja ao Israel no deserto. Essa analogia tem dois lados. Por um lado, assim como Israel tinha sido liberto da escravidão no Egito, assim os crentes já foram libertos da culpa e poder do pecado. Mas, por outro lado, assim como Israel no Sinal ainda não tinha entrada na terra de Canaã, assim ainda não alcançamos nossa salvação em sua plenitude final. Uma experiência segura e incontestável (mas não incerta!) de salvação ainda é futura para a igreja. Esse é o porquê existem tantas exortações pronunciadas a perseverar, não somente nessa passagem, mas por todo o livro de Hebreus.
Deus chama essa possessão futura de salvação de “descanso” ou “meu descanso”, tomado de Salmo 95 (veja Hb. 3:11, 18; 4:1, 3, 5, 10, 11). Além do mais, ele explicitamente associa o Shabbath com esse descanso. Isso acontece de duas formas. Primeiro, em Hebreus 4:4, ele conecta esse descanso com Gênesis 2:2 (“E, havendo Deus terminado no dia sétimo a sua obra, que fizera, descansou nesse dia de toda a sua obra que tinha feito”). Esse é o único lugar onde o Novo Testamento cita esse versículo. É também significativo que existem apenas dois lugares onde o Antigo Testamento cita esse versículo, e nessas duas ocorrências com o propósito de apoiar o mandamento semanal do Shabbath (Ex. 20:11; 31:17). Segundo, em Hebreus 4:9, ele deliberadamente chama o descanso de “um repouso do Shabbath” (ou “guarda do Shabbath”).2
O intento desse comentário inspirado sobre o Antigo Testamento deveria ser claro o suficiente. Deus quer que vejamos o descanso final – a ordem de consumação guardada para os filhos redimidos de Deus – como um grande e infindável descanso sabático. Isso sugere que o dia de Shabbath é um sinal escatológico. Em outras palavras, nosso repouso semanal do Shabbath é um sinal que aponta para o fim da história e para o cumprimento último de todos os propósitos de Deus para a sua criação.
Ver o Shabbath nessa luz tem implicações significativas não somente para a nossa atitude para com o Dia do Senhor, mas também para como vemos a nós mesmos e todas as nossas atividades como servos de Deus. O Shabbath semanal não é apenas a provisão de Deus, de forma que possamos ter tempo para adorá-lo (embora certamente o seja). O próprio descanso – cessar tanto quanto possível de todas aquelas atividades que são apropriadas nos outros seis dias da semana – tem significado positivo. O Dia do Senhor é sobre adoração, pois é em primeiro lugar sobre o evangelho. É um sinal, um testemunho tanto para a igreja como para o mundo espectador, que “não sois de vós mesmos” (1Co. 6:19). Somos dependentes de Deus, e não de nós mesmos, para a nossa provisão. Isso é um sinal que não confiamos em nós mesmos e em nossos esforços como filhos e filhas caídas de Adão. Confiamos na justiça perfeita de Cristo, o último Adão. Confiamos na fidelidade de Deus às suas promessas pactuais de fazer por nós aquilo que somos incapazes de fazer por nós mesmos.
Nós obscurecemos o significado do Dia do Senhor se o desvinculamos dos outros seis dias da semana. O ciclo semanal – que estrutura a existência humana em quase toda época e lugar – fornece um tipo de “filosofia da história”. O padrão de seis dias de atividade interrompida por um dia de descanso é uma lembrança contínua que os seres humanos não estão imersos numa seqüência de dias sem significado, um após o outro sem fim. A história tem um princípio e um fim. Dirigimo-nos para o julgamento final e a consumação de todas as coisas. Todas as vezes que lembramos o dia de Shabbath para santificá-lo, isso nos encoraja a “pensar mais alto”. Lembramos que somos filhos redimidos de Deus. O Shabbath semanal é um sinal dado por Deus, para que nossas vidas não sejam sem sentido ou propósito.
Todas as vezes que negligenciamos consagrar o dia de Shabbath a Deus, estamos na verdade roubando a esperança de nós mesmos. Todas as vezes que falhamos em guardar o dia santo para Deus, estamos na verdade obscurecendo nosso testemunho ao mundo da esperança em Cristo.
Todo dia de Shabbath é uma lembrança graciosa que o nosso “trabalho não é vão no Senhor” (1Co. 15:58).
O Shabbath é agora o Dia do Senhor. O dia de Shabbath mudou do final para o começo da semana. Nosso grande privilégio sob o Novo Pacto é começar cada semana com o Shabbath. Isso é um sinal – por causa da ressurreição de Jesus no primeiro dia da semana – não somente que a nova criação está “já prestes para se revelar no último tempo” (1Pe. 1:5), mas também que nosso Senhor Jesus Cristo de fato já começou a nova criação. Porque ainda olhamos para a futura consumação, quando entraremos no descanso de Deus em perfeição, continuamos a ter um Shabbath semanal do Novo Testamento. Porque em Jesus Cristo já entramos no descanso de Deus em princípio, nós começamos a semana com o Shabbath. Já possuímos “o Espírito Santo da promessa, o qual é o penhor da nossa herança” (Ef. 1:13-14). O Dia do Senhor é um sinal semanal de que a salvação não é apenas uma esperança futura, mas uma possessão presente.
Num mundo crescentemente sem Deus e sem esperança, nossa guarda semanal do Shabbath é um testemunho sem voz, mas todavia eloqüente e poderoso – um sinal de esperança – a esperança, Deus nos reassegura, que “não desaponta” (Rm. 5:5).
2Nas versões do autor: “a Sabbath-rest” e “Sabbath keeping”. (Nota do tradutor)
O autor, um ministro da Orthodox Presbyterian Church, serve como professor de teologia sistemática no Westminster Theological Seminary em Filadélfia (USA). Ele é o autor dos seguintes livros: Resurrection and Redemption, Calvin's Doctrine of the Sabbath, Perspectives on Pentecost e outros.
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