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domingo, 6 de dezembro de 2020

Qual igreja protestante é a verdadeira?

Se você já debateu com proselitistas católicos alguma vez, já deve ter ouvido esse “argumento” em forma de pergunta em tom desafiador: “Qual Igreja protestante é a verdadeira?” (claro que a pergunta mesmo não vai vir assim, mas sim algo como: “Qual das duzentas milhões de seitas protestantes de fundo de quintal é a verdadeira???”). Como a maioria desses papistas enfurecidos de internet lastimavelmente funciona como um cd arranhado em uma vitrola quebrada, só sabem repetir, repetir e repetir as mesmas ladainhas de sempre. Por isso, não importa o que esteja sendo debatido: ele sempre vai levar a discussão para duas coisas – a “divisão protestante” e a Sola Scriptura, que funcionam como “cidades de refúgio” às quais eles recorrem na primeira oportunidade que aparece (geralmente quando a situação no debate já é bem desesperadora, e o alerta vermelho de mudar de assunto precisa ser acionado antes que seja tarde).

Por isso, depois de “onde está a Sola Scriptura na Bíblia” e “como você sabe quais são os livros inspirados”, a pergunta mais rotineira é essa do tópico. O debate pode ser sobre imaculada conceição, sobre intercessão dos santos, sobre papado ou sobre “bolacha ou biscoito”, que o romanista sempre dará um jeitinho de deslocar o foco do debate para estas três perguntas, que são os únicos jargões que ele conseguiu decorar e por isso os guarda como “cartas na manga”, convicto de que deixam qualquer protestante em apuros. Eu não vou responder aqui as duas primeiras porque já tenho um livro inteiro só sobre isso (“Em Defesa da Sola Scriptura”, que você pode baixar ou comprar na página dos livros), então vamos à terceira, a pergunta do tópico. Está preparado para saber qual das igrejas protestantes é a verdadeira? Se sim, então aqui está a resposta (que rufem os tambores e soem os clarins): nenhuma e todas.

Calma. Antes que você feche esta página e saia por aí pensando e dizendo que eu entrei em uma flagrante contradição lógica, deixe-me explicar em que sentido que nenhuma denominação evangélica é verdadeira e em que sentido que todas elas são. Vamos começar com o “nenhuma”. Para você entender o que o católico tem em mente quando faz uma pergunta dessas, precisa primeiro compreender o que ele entende como “Igreja”. Quando um evangélico em um livro qualquer diz algo como “a Igreja precisa de um avivamento”, ele está se referindo aos cristãos como um todo, não a uma “placa de igreja” (denominação). Este é o conceito bíblico de “Igreja” que aparece em todo o NT, como eu argumento em numerosos artigos, mas principalmente aqui, aqui e aqui (artigos indispensáveis para se entender esse assunto, e que você precisaria ler antes deste aqui).

Mas quando um católico usa o mesmo termo “Igreja”, ele não está falando dos cristãos ou dos católicos como um todo, mas sim da instituição conhecida como “Igreja Católica Apostólica Romana”. Os evangélicos entendem a Igreja como o corpo de Cristo, que somos nós, e por isso é perfeitamente correto afirmar que nós somos a Igreja. Quando Paulo pede para saudar “a igreja que se reúne na casa deles [Priscila e Áquila]” (Rm 16:5), ele não estava pedindo para saudar uma instituição religiosa, uma hierarquia eclesiástica ou um conjunto de tradições e dogmas, e sim os próprios crentes que se reuniam naquela casa. A casa era a “igreja visível”, mas não a Igreja em si, que eram os cristãos que lá se reuniam. Mas no catolicismo não existe essa distinção entre igreja visível e igreja invisível, por isso eles tomam todos os textos que falam em igreja como se referindo à “Igreja Católica Romana”.

Por conta disso, toda a discussão sobre “a Igreja verdadeira” já começa errada a partir do momento em que as duas partes estão pensando em coisas totalmente diferentes quando usam o mesmo termo “Igreja” (ekklesia), que é uma coisa para eles, e outra coisa para nós. É como um brasileiro falar de “propina” com um português, sem observar que em Portugal essa palavra não tem nada a ver com corrupção, mas com as mensalidades da universidade. Ou então imagine que um português chame uma moça brasileira de “rapariga”, que lá não significa mais do que dizer “menina”, mas que aqui ele estaria ofendendo qualquer moça que não saiba disso. Não importa se é a mesma palavra que os dois estão usando: se eles não têm em mente um mesmo conceito, será uma “conversa de louco”, uma grande e barulhenta confusão.

É isso o que acontece quando um católico cita, por exemplo, um texto que diz que a Igreja é a “coluna e sustentáculo da verdade” (1Tm 3:15), e já vai logo concluindo que a “Igreja Católica Apostólica Romana é a coluna e sustentáculo da verdade”, tacando esse versículo na cara de um protestante como se tivesse refutado todo o protestantismo por completo. Com um pressuposto desses, sequer precisaríamos de versículos como esse – o próprio fato de “Igreja” na Bíblia significar “Igreja Romana” já seria o bastante. Ou seja, o “argumento” deles é a própria pressuposição. Primeiro eles partem da premissa de que Igreja na Bíblia é a Igreja Romana, e depois interpretam os versículos à luz desse entendimento (ou melhor, dessa distorção).

É por isso que, se partirmos do conceito católico de “Igreja”, não existe nenhuma igreja protestante “verdadeira”, porque para o católico a Igreja é uma instituição infalível guiada por um papa infalível, uma noção completamente estranha para os protestantes (e para a Bíblia). Um católico pensa “Igreja” como instituição, e “verdadeira” como uma exatidão matemática cuja conta deve fechar sempre em 100% de precisão. Em outras palavras, a “Igreja verdadeira” seria uma instituição totalmente isenta de erros, que é bem real nos sonhos de um apologista católico, mas não no mundo real. O problema com este conceito não é apenas porque ele viola o legítimo significado de “Igreja”, mas porque ele ignora que a própria Igreja Romana passou por numerosas transformações com o tempo, tanto ética quanto doutrinariamente, o que significa que errou antes, ou que erra agora.

Um exemplo: durante séculos a Igreja Romana queimou “hereges” nas fogueiras da Inquisição, mas hoje ela nem pensa mais nisso. O papa João Paulo II pediu um perdão público pelos crimes da Inquisição e o papa Francisco frequentemente se reúne com líderes protestantes e de outras religiões em encontros e cultos ecumênicos dos mais amigáveis (sem nenhuma intenção de queimá-los). Outro exemplo: durante muito tempo os documentos oficiais da Igreja diziam que “fora da Igreja Romana não há salvação”, mas o Concílio Vaticano II abriu aos não-católicos as portas da salvação, anulando expressamente o ensino antigo (escrevi sobre isso aqui). Mais um: os papas proibiram a tradução da Bíblia ao vernáculo e sua distribuição pelas Sociedades Bíblicas por muito tempo, mas no século passado deram o braço a torcer em relação às traduções e louvaram sua propagação por parte dessas mesmas sociedades que antes eram tão demonizadas por eles (leia mais sobre isso aqui).

Mais um: as encíclicas papais eram categóricas em condenar com todo o rigor coisas como a liberdade de culto para as outras religiões, a liberdade de imprensa e até mesmo a liberdade de consciência, classificando tudo isso como “monstruosidades modernistas” – que os papas modernos nem pensam em condenar mais (confira mais sobre isso aqui). Continuemos: durante séculos ninguém creu em purgatório, em transubstanciação ou em imaculada conceição de Maria, que era negada até mesmo por Tomás de Aquino (veja aqui, aqui e aqui). Hoje, essas doutrinas viraram dogmas que o católico tem a obrigação de crer, se quiser ser considerado católico. O prof. Orlando Fedeli, da extinta Montfort, chegou a dizer que se Irineu ensinasse o milenarismo nos dias de hoje seria um herege, mas ele podia ter ensinado em sua época “porque ainda não era um dogma” (veja aqui).

Mas nós nem precisamos ir tão longe: hoje mesmo há igrejas católicas carismáticas, cujos fieis falam em línguas e copiam a liturgia pentecostal descaradamente, e outros que são tradicionalistas, que repudiam a Renovação Carismática Católica e, em certos casos, nem mesmo os consideram católicos de verdade (veja aqui). Há também uma clara orientação esquerdista na CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), um organismo vinculado ao Vaticano, e por isso o que menos faltam são padres “comunistas” no altar, denunciados à exaustão pelos próprios católicos conservadores. Há padres e teólogos como Leonardo Boff que são tratados por eles como “hereges excomungados”, mas que jamais foram formalmente excomungados pela Igreja, e continuam pregando livremente com autorização da alta hierarquia da Igreja.

Portanto, não há como escapar ao fato: a Igreja Católica Romana não pode ser a “Igreja” (instituição) “verdadeira” (no sentido de não ter nenhum erro), porque se transforma ao longo dos séculos conforme a conveniência, negando explicitamente ensinos e práticas anteriores já superados apesar da sua resistência, e nem ao menos possui uma unidade interna, com católicos discutindo entre si o tempo todo, disputando sobre “quem é o verdadeiro católico” – cada um dos quais se julgando o “católico verdadeiro” e acusando o outro de ser um “falso católico”, que pode ser um carismático, um tradicionalista, um sedevacantista, um veterocatólico, um episcopal, um padre “comunista” da CNBB ou da Teologia da Libertação, ou literalmente qualquer um que tenha opiniões políticas ou religiosas que destoem de um outro católico (cada um deles se apoiando nos “documentos da Igreja”, que também entram em contradição entre si).

Como protestantes, nós entendemos que igrejas visíveis são falhas, porque são governadas por homens, e homens são falhos. Por isso, é simplesmente uma ilusão buscar “a igreja perfeita”. Mesmo nos tempos em que os apóstolos ainda viviam, o que não faltavam eram igrejas notoriamente imperfeitas. A igreja da Galácia estava aderindo à heresia judaizante (Gl 3:3-4), a igreja de Corinto fazia confusão com os dons espirituais (1Co 14) e alguns duvidavam até da ressurreição (1Co 15); a igreja de Éfeso elogiada por Paulo já havia caído na época de João (Ap 2:4-5), a igreja de Pérgamo seguia os ensinos de Balaão e dos nicolaítas (Ap 2:14-16), a igreja de Tiatira tolerava Jezabel (Ap 2:20-23), a igreja de Sardes estava espiritualmente morta (Ap 3:1-4), a igreja de Laodiceia estava a ponto de ser vomitada da boca de Deus (Ap 3:14-19), e João ainda menciona uma igreja governada por um tirano e ímpio chamado Diótrefes, que mandava e desmandava ao seu bel-prazer (3Jo 1:9-10).

Se era esse o estado das igrejas enquanto os apóstolos ainda viviam, imagine dois mil anos depois. Por isso é tão estúpido pensar que existe em nossa época uma “igreja perfeita” que não existia nem no século I. O próprio Paulo foi certeiro quando disse que “depois da minha partida, lobos ferozes penetrarão no meio de vocês e não pouparão o rebanho, e dentre vocês mesmos se levantarão homens que torcerão a verdade, a fim de atrair os discípulos” (At 20:29-30). Observe que Paulo não disse que esses «homens que torcerão à verdade» seriam apenas os “de fora”, mas sim dentre vocês mesmos, isto é, entre os próprios bispos instituídos pelo apóstolo (v. 17). Se esse nível de corrupção já existia desde tão cedo, acreditar em uma “igreja perfeita” em pleno século XXI é crer em conto de fadas, é literalmente pedir para ser enganado. Está além do nível da mera ingenuidade.

Por isso, considerando que “verdadeira” para o católico se refere a uma igreja “perfeita”, sem erros, então neste sentido não existe nenhuma “igreja verdadeira”. Mas isso não significa que não haja igrejas relativamente saudáveis para se congregar. Este é o ponto. Ser “verdadeira”, biblicamente falando, não significa ser perfeita ou isenta de erros. Todas essas igrejas acima mencionadas tinham defeitos, algumas delas defeitos graves, mas todas elas ainda eram consideradas “igrejas”. Nenhuma igreja recebeu tantas críticas de Paulo do que a de Corinto, mas mesmo assim ele se refere a essa igreja como “igreja de Deus” (1Co 1:2), e aos coríntios como “santificados em Cristo Jesus e chamados para serem santos” (1Co 1:2).

É por isso que um evangélico pode tranquilamente responder que todas as igrejas autenticamente evangélicas são verdadeiras, considerando que ser verdadeira é estar comprometida com as principais verdades da fé, as doutrinas centrais e essenciais para a salvação, e com uma ética respeitável – embora não sejam perfeitas. A Igreja Presbiteriana é «verdadeira», a Batista é «verdadeira», a Assembleia de Deus é «verdadeira», a Bola de Neve é «verdadeira» e a igrejinha de “fundo de quintal” fundada ontem também é «verdadeira», desde que se comprometam com as verdades primordiais da fé. Elas são verdadeiras não por serem perfeitas, mas por preservarem a pureza da fé dentro de um certo nível de tolerância, no qual as sete igrejas do Apocalipse se encontravam em uma medida maior ou menor.

Para o protestante, a verdadeira Igreja é uma só: o corpo de Cristo, que consiste em todos os cristãos regenerados no mundo todo. E esses cristãos se reúnem em igrejas (ou comunidades) visíveis, que são «verdadeiras» por pregarem a salvação pela graça, a autoridade das Escrituras, a centralidade de Cristo, sua encarnação, expiação, ressurreição e volta gloriosa no fim dos tempos – entre outras doutrinas centrais que partem das Cinco Solas da Reforma e podem ser conferidas nesta confissão de fé que subscreve as crenças fundamentais de qualquer protestante, independentemente da denominação a que pertença. Diferente do que os católicos pensam, os evangélicos possuem um núcleo comum de doutrinas fundamentais compartilhadas por todos, como ficou evidente no Pacto de Lausana firmado em 1974, onde foi criado o maior comitê mundial de igrejas evangélicas reunindo as mais diversas denominações de mais de 150 países em prol de um pacto em comum, que você pode conferir aqui.

Isso obviamente não anula a existência de divergências em outros pontos doutrinários considerados secundários, mesmo porque no meio evangélico ninguém tem a pretensão de exigir submissão acrítica e incondicional a um ditador que define detalhadamente tudo o que deve ser obrigatoriamente crido, esmagando a consciência individual de todos os outros. Quando a Igreja Católica agiu assim na figura do papado, o resultado foi perseguição religiosa, torturas, massacres, genocídios, inovações doutrinárias inteiramente desprovidas de qualquer fundamento sério e uma liturgia cada vez mais rígida, mecânica e engessada, que mancharam o nome de Cristo, macularam a história do Cristianismo e escandalizaram a todos.

Liberdade gera pluralidade, e tentar evitar a pluralidade sufocando a liberdade gera todo tipo de sistema tirânico como o que vemos hoje na Coreia do Norte, onde todo o povo tem a função única de balançar positivamente a cabeça em direção aos seus líderes como uma vaquinha de presépio. Nós, ao contrário, cremos como Agostinho: “No essencial, unidade; no não-essencial, liberdade; em todas as coisas, amor”. O que a Igreja Romana fez foi exigir unidade mesmo no não-essencial, e para isso criou toda uma estrutura hierárquica de poder cujos frutos se fazem presentes entre nós até hoje, seja na completa dependência que os leigos têm dos padres para se chegar a Deus, seja na criação de estados católicos absolutistas e despóticos que apenas imitavam a estrutura da Igreja à qual serviam, perpetrando pobreza e ditaduras por onde passavam.

Então, da próxima vez que você ouvir um apologista católico questionando “qual igreja protestante é a verdadeira”, comece demonstrando o quão falha é a concepção papista de “Igreja”, que jamais foi um conceito institucional e nunca se limitou à hierarquia eclesiástica. Quando estiver claro que a Igreja somos nós, mostre que não existe uma igreja visível perfeita, e que comunidades religiosas podem ser verdadeiras sem serem mutuamente excludentes, porque ser verdadeiro não implica em ser perfeito – se este fosse o caso, nenhuma igreja seria “verdadeira”. Faça-o sair de dentro da caixinha, tire-o da bolha, liberte-o do “8 ou 80”. Não é porque uma igreja é imperfeita que ela é automaticamente “falsa” ou “herética”, como pensam as cabecinhas pequenas. Tal pequenez de pensamento nos levaria a conclusões tão trágicas quanto forçadas, como a de que todas as igrejas às quais Paulo escrevia eram “falsas”, porque nenhuma delas era perfeita (mas mesmo assim eram consideradas igrejas de Deus).

Não que eu tenha a esperança ou a soberba pretensão de que algum deles vá realmente aprender, porque sabemos que a cabeça de "cruzados" de internet funciona na base do raciocínio binário, sobre o qual eu já abordei aqui. A maioria deles são bitolados, intelectualmente limitados para compreender até os raciocínios mais simples do mundo e inteiramente incapazes de pensar fora da caixa, especialmente quando alguma coisa foge do padrão do raciocínio binário, causando um irreversível error 404 no sistema (muito comum quando somam alguma coisa que não resulte em 8 ou 80). Mas se pelo menos o debatedor em questão conseguir entender que a discussão aqui é um pouco menos rasa e simplista do que ele imagina, já é um bom começo.

 

Fonte: lucasbanzoli.com

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