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quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Existem apóstolos nos dias de hoje?

 

Que "existe" existe (o bonitão aí da foto é uma prova disso), mas a discussão aqui é: eles são apóstolos de verdade ou só de mentirinha?

Essa é uma discussão polêmica que tem agitado a Igreja contemporânea, e como eu não sou de ficar em cima do muro, já vou logo antecipando a minha resposta: sim e não. Mas antes que você venha comentar no artigo em repúdio por eu ter respondido que sim ou por ter dito que não (ou por ter dito que sim e que não), deixe-me explicar em que sentido existem apóstolos e em que sentido não existem apóstolos nos dias de hoje. Talvez isso escape a uma leitura superficial à primeira vista, mas no Novo Testamento há dois tipos de apóstolos: os apóstolos stricto sensu e os apóstolos lato sensu, por assim dizer. Para ser considerado um apóstolo no sentido “estrito”, havia as seguintes condições:

“’Porque’, prosseguiu Pedro, ‘está escrito no Livro de Salmos: Fique deserto o seu lugar, e não haja ninguém que nele habite; e ainda: Que outro ocupe o seu lugar. Portanto, é necessário que escolhamos um dos homens que estiveram conosco durante todo o tempo em que o Senhor Jesus viveu entre nós, desde o batismo de João até o dia em que Jesus foi elevado dentre nós às alturas. É preciso que um deles seja conosco testemunha de sua ressurreição’” (Atos 1:20-22)

Neste sentido estrito, é lógico que não pode haver apóstolos modernos, porque ninguém de nossos dias esteve com o Senhor Jesus durante o seu ministério terreno, o viu sendo elevado às alturas ou foi testemunha ocular da sua ressurreição. Neste sentido, portanto, só havia doze apóstolos (considerando Matias no lugar de Judas). Mas dê uma olhada nos versículos abaixo:

“Ouvindo isso, os apóstolos Barnabé e Paulo rasgaram as roupas e correram para o meio da multidão, gritando...” (Atos 14:14)

“Saudai a Andrônico e a Júnias, meus parentes e meus companheiros na prisão, os quais se distinguiram entre os apóstolos e que foram antes de mim em Cristo” (Romanos 16:7)

“Não vi nenhum dos outros apóstolos, a não ser Tiago, irmão do Senhor” (Gálatas 1:19)

Nestes textos vemos cinco personagens bíblicos (Paulo, Barnabé, Andrônico, Júnias e Tiago, o irmão de Jesus) sendo chamados de “apóstolos”, apesar de não fazerem parte do grupo dos doze. Como explicar isso? As coisas ficam um pouco mais claras quando consideramos o significado da palavra “apóstolo”. Ela vem do grego apostoloV (transliterado como “apostolos”, igual ao português, só que sem o acento), que é o mesmo que “enviado”. Por isso a palavra grega para “enviar” vem da mesma raiz (apostellw, transliterado como apostello, com o mesmo significado). Um exemplo é Atos 8:14, que diz que “os apóstolos (apóstolos) em Jerusalém, ouvindo que Samaria havia aceitado a palavra de Deus, enviaram (apostello) para lá Pedro e João” .

Um leitor da Bíblia em português dificilmente suspeitaria da existência de alguma relação entre a expressão «os apóstolos» e «enviaram», mas um leitor do grego original conseguia imediatamente captar a semelhança, da mesma forma que associaríamos caso em português lêssemos “apostolaram” em vez de “enviaram” (só que “apostolaram” é uma palavra que eu inventei e que não existe em nosso idioma, o que distancia um termo do outro, embora no grego sejam da mesma família). Jesus tinha apenas doze discípulos aos quais ele discipulava pessoalmente e que eram chamados de “apóstolos” stricto senso, mas ele também tinha pelo menos outros setenta e dois enviados para pregar o evangelho a outras regiões:

“Depois disso o Senhor designou outros setenta e dois e os enviou dois a dois, adiante dele, a todas as cidades e lugares para onde ele estava prestes a ir” (Lucas 10:1)

Não à toa, na tradição ortodoxa todos esses 72 são chamados de “apóstolos” (eu falo mais sobre isso neste artigo), embora não fizessem parte do círculo mais íntimo de Cristo. Eles eram “apóstolos” porque eram apostello, isto é, porque eram “enviados” para pregar o evangelho. É um sentido diferente do apostolado dos doze, que não admitia um número maior que 12 e que não teve sucessão após a morte dos doze, mas ainda assim é um sentido legítimo. O problema – se é que dá pra chamar de “problema” – é que a Igreja moderna convencionou chamar esse tipo de gente por outro nome: o de missionários.

A primeira vez que eu ouvi alguém me dizer que a palavra “missionário” não consta em parte nenhuma da Bíblia (nem no NT, que eu já havia lido mais de setenta vezes) eu literalmente não acreditei. Tive que recorrer a um buscador online de palavras bíblicas para confirmar essa “assustadora” realidade: não existe um “missionário” mesmo! Mas o fato de inexistir a palavra missionário nem de longe significa que o conceito não existe na Bíblia. Ele existe, mas existe por outro nome, que é justamente o “apóstolo” nesse sentido mais amplo (de todos os que são enviados para pregar o evangelho). Ou seja, não há mais apóstolos hoje no sentido de cargo eclesiástico como os doze originais eram, mas podemos legitimamente chamar de apóstolo qualquer missionário (ainda mais legitimamente do que podemos chamar de “missionário”, já que este termo em si não está na Bíblia, mas o outro sim).

Na prática, isso pode significar que os missionários da JOCUM poderiam se intitular apóstolos no mesmo lato sensu já explicado, e que alguém que o usa stricto sensu para se colocar como superior aos outros eclesiasticamente (como o nosso amado “apóstolo” Valdemiro) deveria pensar em usar um termo mais humilde – embora eu reconheça que se autointitular “apóstolo” em vez de um simples “pastor” confira um status maior (tanto maior como impróprio, na medida em que ele não o aplica aos missionários da sua igreja, mas apenas a si próprio). Por isso, da próxima vez que alguém te perguntar se existem apóstolos hoje em dia, você já pode despreocupadamente responder “sim e não”, deixando essa pessoa ainda mais confusa em um primeiro momento, mas por uma boa causa.
 
Fonte: lucasbanzoli.com

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