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segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Cuidado com a “catolização” das igrejas evangélicas

(Não é um papa, mas parece)


31 de outubro de 1517. Martinho Lutero publica as famosas “95 teses”, condenando o inescrupuloso comércio de indulgências. Prometendo um “lugarzinho no Céu” para as almas do purgatório e assegurando o perdão até mesmo para os pecados que ainda seriam cometidos, a Igreja acumulava fortunas e construía a Basílica de São Pedro, às custas do trabalho pesado, do suor e até do sangue do povo. Quinhentos anos se passam. Ligamos a televisão e vemos pastores, bispos e “apóstolos” pedindo dinheiro sem parar, vendendo objetos “ungidos” pela bagatela de um salário mínimo (ou mais), inventando o “trízimo”, lançando praga em quem não é dizimista fiel e ameaçando-os com o fogo do inferno. “Sacrifícios” como a chave da casa ou do carro, cujo propósito é deixar um pastor rico mais rico ainda, enquanto o povo dessas igrejas é esmagadoramente pobre e simples. Por estarmos no século XXI, chega a ser ainda mais escandaloso que a venda de indulgências, que Lutero e os protestantes tanto combateram.

Eu tenho um amigo de outro país que era fanático pela Igreja Universal, daquele tipo que tinha a foto do Edir Macedo no perfil do facebook e que tentava me converter, apesar de saber que eu já era evangélico. Não perdia um culto, falava muito disso, era o mais empolgado que eu já vi. Até que um dia ele foi constrangido a fazer aquilo que eles chamam de “sacrifício no altar”. Usando o exemplo de Isaque, pediam para dar à “obra do Senhor” (leia-se: a eles mesmos) aquilo que tinham de maior valor, fosse o que fosse. Esse meu amigo tem pais divorciados e sustenta sozinho uma família com quatro pessoas. Desempregado, tinha como único bem material o computador. Após tanta insistência e pressão psicológica, ele decidiu “sacrificar no altar” esse computador, ficando mais de meio ano sem um. Não preciso dizer que quando ele se deu conta da baita furada em que se meteu saiu da igreja – não da Igreja Universal, mas de qualquer igreja, porque quando essas pessoas se decepcionam com uma igreja, formam um conceito negativo de todas. É hoje um desviado, mas pelo menos tem um notebook velho que eu doei por sedex.

Eu poderia passar aqui o dia inteiro contando casos assim, e casos incomparavelmente piores. A apelação chegou a um nível tão bizarro que você não sabe o que é pior, o canal do padre rezando o Ave-Maria cinquenta vezes seguidas ou o do pastor falando só de dinheiro, dinheiro e mais dinheiro. Evidentemente, não são todas as igrejas evangélicas que fazem este perfil, do contrário eu jamais seria um evangélico. Mas é um tipo de igreja que está crescendo cada vez mais, especialmente nas camadas mais pobres, iludidas com promessas de bênçãos materiais e prosperidade fácil, que conseguirão através dos “sacrifícios”. É irônico e perturbador que a velha mentalidade católica das indulgências tenha ressuscitado na era moderna, não no próprio catolicismo, mas justamente entre os sucessores daqueles que denunciaram as indulgências lá atrás.

Quando eu parei pra pensar, vi que na verdade muito mais foi importado do catolicismo medieval direto para as igrejas contemporâneas. Um exemplo disso são os “sabonetes ungidos”, a “meia consagrada”, a “água benta”, a “caneta sagrada” e milhares de outras bugigangas que são vendidas a preços exorbitantes nessas igrejas, passando a perna no povo descaradamente. Você jamais compraria uma caneta por cem reais, mas se eu dissesse que tenho uma caneta mágica que te fará vencer na vida e comer do melhor desta terra – e você acreditasse nisso – eu aposto que você compraria, acreditando que vale a pena esse bom negócio. Isso é o que eles fazem, trocando a “magia” pela “unção”, como se houvesse algo naquele objeto físico que o tornasse mais sagrado, mais importante ou mais qualquer coisa em relação aos objetos “normais”. A diferença disso para a “mágica” é nada.

Quando lemos os livros de história, vemos algo curioso: a mesma Igreja que vendia indulgências também tinha suas milhares de “relíquias sagradas”, tais como os infindáveis pedaços da cruz de Cristo espalhados na Europa inteira, as muitas cabeças de João Batista e até mesmo o leite das mamas da virgem Maria, que assombrou Calvino quando ainda era católico e que escandalizava humanistas esclarecidos como Erasmo de Roterdã. As próprias cruzadas foram fruto desse pensamento, pois o papa Urbano II jamais decidiu lutar contra os muçulmanos pelas razões que os revisionistas alegam hoje. Seu discurso se centrava exclusivamente na “libertação da Terra Santa”. Os árabes podiam ter conquistado inúmeras terras que já haviam sido cristãs, mas só uma importava: Jerusalém. E como Jerusalém era sagrada, milhões de vidas pagaram tentando “libertá-la” e reconquistá-la (para no fim das contas continuar tudo como estava).

A Reforma buscou justamente acabar com essa esculhambação do sagrado, chamando as coisas por aquilo que são. Os “pedaços da cruz de Cristo” não eram objetos sagrados, eram apenas madeira. Jerusalém, fisicamente falando, é apenas uma terra como qualquer outra, apesar de ter uma história especial na Bíblia. Uma oração feita em Jerusalém não chegava mais rápido aos ouvidos de Deus do que uma feita em qualquer outro lugar, alguém com um pedaço da cruz de Cristo em casa não atrairia as bênçãos divinas só por causa disso, e aqueles que compravam um papel achando que estavam recebendo o perdão (indulgência) dos pecados estavam apenas comprando papel por um preço consideravelmente acima do convencional.

Para os reformadores, nossa verdadeira preocupação não deveria estar nas coisas, mas em quem somos. Uma fita no carro não vai evitar batidas, mas se buscarmos a Deus com todo o nosso coração, alma, força e entendimento, teremos o verdadeiro prêmio do cristão: a vida eterna. Assim, o foco deixava de estar nos objetos e passava a Cristo. Por isso a Reforma foi, antes de tudo, um movimento Cristocêntrico, onde Cristo voltava a ocupar o lugar central do qual já havia sido expurgado há tanto tempo. O “Sola Christus” não era um chavão desprovido de significado, mas o centro de toda a teologia da Reforma. E Cristo não estava escondido em Jerusalém, pendurado em um crucifixo, mergulhado numa água benta ou amarrado numa fitinha, mas vivo no coração de cada um de nós, que devemos adorá-lo em espírito e em verdade (Jo 4:24). Era assim que pensavam os reformadores.

Então veio a “Igreja moderna”, jogando na lata do lixo todos os princípios mais básicos da Reforma e voltando os olhos novamente para as coisas. A “água benta” do catolicismo virou a “água ungida” de certas igrejas, que pegam do catolicismo o modelo que já havia sido denunciado e derrotado pelos reformadores. A Bíblia, que para uns é apenas um amuleto da sorte para deixar aberto no Salmo 91 e “espantar os males”, para outros é um livro com meia dúzia de textos para serem tirados do contexto e convertidos em promessas vazias, sem nenhum respeito pelas regras mais básicas da interpretação.

A própria ideia do “sacrifício” é uma noção anticristã, que ignora o fato de que o verdadeiro sacrifício que nos traz a vida é o que Jesus já fez na cruz do Calvário, e não um computador, um carro, uma casa ou um fardo qualquer. Eu me lembro do dia em que certo televangelista subiu um monte supostamente muito alto, levando em suas costas milhares de pedidos de oração de membros da sua igreja (ou qualquer outra coisa que fosse para passar a impressão de que estava muito pesado). Após tamanho sacrifício, o guerreiro finalmente chegava ao topo do monte, fazendo toda a questão do mundo de ressaltar o quanto ele sofreu para chegar ali, como se isso o fizesse melhor do que um crente qualquer que orasse no conforto de casa por todos aqueles pedidos. Qual a diferença disso para o conceito católico do autoflagelo, em que padres mutilam seus próprios corpos para provar o quanto são “abnegados”? Nos dois casos, temos alguém fazendo o que não precisa e Deus não mandou, apenas para mostrar o quão santo e piedoso é.

Foi esse conceito de “sacrifício” que criou a doutrina católica da penitência, pela qual um fiel que cometeu um determinado pecado tem que repetir uma reza trocentas vezes ou fazer uma peregrinação a qualquer lugar “sagrado” (de joelhos, de preferência) até que Deus finalmente dê o braço a torcer e decida que ele está “perdoado”. Jesus apenas disse «vá e não peques mais», mas como para eles isso é light demais, preferem impor uma série de penitências e sacrifícios para conseguir, aí sim, o favor divino. Sacrifícios esses que são repetidos, senão à risca, pelo menos em boa medida por pastores modernos, que exigem dos seus fieis coisas que Deus não pediu, mas eles sim.

Outra coisa exigida por muitos pastores nos dias de hoje, exatamente da forma católica que a Reforma tanto combateu, é a submissão acrítica e incondicional à autoridade (no caso protestante, ao pastor). Na época de Lutero (e ainda hoje, mas naquela época muito mais) o papa era tratado como uma sumidade intocável, quase que um ser divino na terra, o representante de Deus entre os homens, o “bispo dos bispos” e aquele a quem não se podia questionar nada. No início eles se chamavam de “vigários de Pedro”, depois acharam que isso era pouco e passaram a se chamar “vigários de Cristo” (tenha em conta que o significado de vigário é “substituto”, ou seja, aquele que se coloca no lugar de outro).

Essa submissão incondicional era exigida pela Ordem dos Jesuítas, cuja máxima, que eu nunca me canso de repetir aqui, é que “o branco que eu vejo é preto, se a hierarquia da Igreja assim o tiver determinado”[1] – nas imortais palavras de Inácio de Loyola. Isso também era requisitado pelos próprios papas, como já era de se esperar, sendo um exemplo clássico o discurso oficial do papa Pio X chamado “Como Amar o Papa”, que entre outras coisas diz que “não se fica a discutir sobre o que ele manda ou exige, a procurar até onde vai o dever rigoroso da obediência, e a marcar o limite desta obrigação” (leia o discurso completo neste artigo). Hoje em dia virou moda católicos aviltarem contra o papa e o atacarem publicamente, mas naquela época se alguém fizesse isso com um simples padre já era caçado pela Inquisição, quanto mais se fizesse com o papa.

O protestantismo, com o princípio basilar do sacerdócio universal de todos os crentes, destruiu a barreira que separava leigos e clérigos espiritualmente e fez de todos os batizados “sacerdotes”, ou seja, responsáveis por si mesmos diante de Deus e capazes de alcançá-lo sem a mediação de sacerdotes formais. Enquanto no catolicismo romano havia uma distância intransponível entre o clero e os leigos, cuja missa feita em um idioma desconhecido do povo e de costas para ele era a coisa mais representativa possível, na Reforma esse desprezo aos leigos foi convertido em emancipação e dignidade.

Então avançamos cinco séculos, e o que vemos hoje em muitas igrejas alegadamente evangélicas? Um retorno à mentalidade de submissão incondicional ao líder religioso, a volta a uma hierarquia de comando cego, o retorno a uma mentalidade de um “clero superior” em contraposição aos leigos, em posição de inferioridade. Um livro que foi em grande parte responsável por isso e que trouxe efeitos nefastos na Igreja moderna foi o “Autoridade Espiritual”, do Watchman Nee, um asiático que mistura conceitos da filosofia confucionista chinesa com os da Bíblia, cujo propósito é dar ao pastor um status de “intocável” no pior sentido possível: o de estar acima da repreensão e da crítica.

As igrejas que seguem os ensinos de Nee têm até um chavão que gostam de usar quando alguém critica um pastor: “Não toque no ungido do Senhor!”. Como sempre, a “exejegue” é do pior nível possível: pegam textos isolados do Antigo Testamento que falam de reis e não de sacerdotes, cujo sentido é de não matá-los e não de não criticá-los, e por meio de malabarismos interpretativos concluem que o pastor está acima da crítica, mesmo quando estiver ensinando algo flagrantemente herético (como este próprio ensino). A justificativa nem importa muito, já que eles sabem que a imensa maioria dos membros dessas igrejas não tem o hábito de estudar a Bíblia, bastando então encontrar qualquer pretexto que os faça acreditar que ensinos diabólicos como esse são “bíblicos”.

A Igreja nas mãos de Roma era uma ditadura; a Reforma a transformou em uma democracia, e os pastores modernos, descontentes com isso, restauraram a ditadura para poderem pregar falsas doutrinas sem qualquer impedimento ou restrição, exatamente como faziam os papas. Uma dessas heresias, que em certo sentido foi pregada por ambos, é a teologia da prosperidade, a respeito da qual eu já abordei neste artigo do meu outro site. A Igreja Romana da época de Lutero não dizia que o cristão tinha que enriquecer ou que Deus se responsabilizava por isso, até porque praticamente todo mundo vivia entre a linha da pobreza e a da miséria, mas era de longe a instituição mais rica do mundo, que acumulava fortunas e terras em todo lugar, construindo basílicas monumentais e catedrais esplendorosas enquanto o povo, literalmente, morria de fome (mas mesmo assim era obrigado a pagar um dízimo duplo, que era o imposto eclesiástico da época).

Ninguém precisa ser um grande observador para notar a semelhança gritante com os nossos dias, bastando para isso olhar o suntuoso “templo de Salomão/Macedo” enquanto os membros dessas igrejas são, em suma maioria, pessoas muito pobres e simples. E por mais que não se exija o dízimo como a Igreja de Roma fazia coercitivamente, os fieis são tão constantemente constrangidos a doar tudo o que puderem que muitos doam o que tem e o que não têm, apavorados com a ameaça do devorador e do gafanhoto, além do fogo do inferno. O resultado é o mesmo da era medieval: um clero (pastores) extremamente rico, em contraste a um povo cada vez mais pobre. A teologia da prosperidade funciona mesmo, mas só para os engravatados ou de batina.

Há outros muitos aspectos em que uma parte das igrejas evangélicas tem se assemelhado aos moldes católicos em sua pior época, como, por exemplo, o hábito de se repetir, e repetir, e repetir, e repetir mais ainda as mesmas coisas na liturgia (culto). O padre repete quinhentas vezes o Ave-Maria ou qualquer outra reza ou frase já conhecida, enquanto muitas igrejas pentecostais pegaram o vício de se repetir do mesmo modo os chamados “jargões”, tais como “glória a Deus”, “aleluia”, “a paz do Senhor”, “a vitória é sua”, etc. Eu até entendo quando alguém repete isso uma vez, ou duas vezes, ou algumas vezes, mas quando fica literalmente o culto todo repetindo isso já é demais, ninguém aguenta. É como se na cabeça deles quanto mais alguém repete esses jargões mais “espiritual” essa pessoa é, da mesma forma que os padres pensavam que Deus se orgulhava deles pela repetição exaustiva de palavras e frases.

Nunca vou me esquecer do dia em que participei de um “culto”, há muitos anos atrás, em uma igrejinha que eu respeito muito até hoje, mas que naquele dia chamou para pregar um indivíduo que claramente não tinha nenhum conteúdo, nenhum preparo, nenhuma mensagem, e tudo o que fazia era berrar, pular, gritar, sapatear, fazer voz grossa e repetir a palavra “vitória” mil vezes, aos berros. Suava dos pés à cabeça, mas não se cansava. A comunidade entrava em estado de êxtase, mas saía dali e cinco minutos depois já não se lembrava de nada da palavra, porque não teve palavra nenhuma. Infelizmente, de lá pra cá o cenário só piorou, e muitos cultos tem se transformado numa mera animação de palco (e em casos mais extremos, em um verdadeiro circo). Lutero pegou a época de pior corrupção moral da história da Igreja, mas, se ressuscitasse hoje, talvez não achasse as coisas muito melhores.

É sempre triste quando eu tenho que escrever um artigo como esse, condenando erros internos na comunidade evangélica que, com certeza, continuarão existindo com ou sem admoestações como essa. Mas é justamente para isso que a internet existe: para tirar o monopólio das mãos daqueles que por tanto tempo tiveram um discurso hegemônico com o poder de determinar o que deve ou não ser crido, e desta forma influenciar uma nova geração mais esclarecida que a atual, que reformará suas comunidades religiosas com a limpeza que deve ser feita – a que Lutero não hesitou em fazer, e que cabe a cada um de nós hoje.

 

Fonte: lucasbanzoli.com

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