“Porquanto aos que de antemão
conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a
fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a
esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que
justificou, a esses também glorificou.” (Rm 8.29–30)
Introdução
Salvação
e cinco pontos remetem ao acróstico TULIP, conhecidos como os cinco pontos do
calvinismo: total depravação, eleição incondicional, expiação limitada, graça
irresistível e perseverança dos santos. Mas neste artigo gostaria de enfatizar
outros cinco pontos, relacionados com a ordem de salvação, os quais são
geralmente referidos como elos da cadeia inquebrável da salvação divina, que
começando na eternidade passada, mergulha na história e continua na eternidade
futura.
O texto que nos guiará é Romanos
8:29-30, citado na epígrafe. É importante, desde já, chamar atenção para alguns
detalhes importantes sobre esse texto. O primeiro deles, é que os objetos das
ações divinas nele mencionados são pessoas e não algo nelas ou delas. As
reiteradas referências “aos
que” prova tratar-se de pessoas e não de coisas, caso em que o
apóstolo usaria “os
que” para referir-se aos objetos. O segundo é que se trata de um
grupo definido e fixo de pessoas. Novamente, a referência “aos que… também os”
implica isso. Os mesmos “aos
que” referidos na eternidade passada são os mesmos “aos que” referidos
na história e são os mesmos “aos
que” que entram na glória. Ninguém é excluído, nenhum é adicionado.
Estes dois fatos devem ser levados em conta ao considerarmos os que se segue.
Conhecidos de antemão
A
expressão “de antemão
conheceu” é tradução de uma única palavra: proegno. O prefixo pro- indica um
conhecimento prévio e eterno e é traduzido por “de antemão”
na expressão. Ele denota algo ocorrido na eternidade passada e não na história
corrente. Por sua vez, egno
é o modo indicativo ativo do verbo ginosko, em seu aspecto aoristo, que
significa “conheceu”.
Aplicado ao conhecimento divino, não é mera presciência ou previsão. Deus é
onisciente, conhecendo num ato simples tudo o que há para ser conhecido, real
ou possível. E sendo presciente, conhece todos os fatos desde sempre. Mas proginosko tem um
significado mais profundo que o conhecimento exaustivo e infalível de todas as
pessoas, coisas e eventos.
De
fato, ginosko
traz em si a ideia de conhecimento relacional ao invés de mera constatação
antecipada de fatos. Quando Deus diz “povo
que não conheci me serviu” (2Sm 22.44; Sl 18:43) e Cristo sentencia
aos ímpios “nunca vos
conheci” (Mt 7.23) não estão falando que não sabiam que eles
existiam, mas declarando que não havia um conhecimento relacional. De igual modo,
quando o Senhor declara “Eu
te conheci no deserto” (Os 13.5), Jesus informa “conheço as minhas ovelhas, e elas
me conhecem a mim” (Jo 10.14) e Paulo assegura “o Senhor conhece os que lhe
pertencem” (2Tm 2.19) a ideia envolvida não é de mero conhecimento,
mas de relacionamento íntimo. Aliás, os judeus usavam a palavra conhecer para
se referir à relação sexual entre um homem e uma mulher: “contudo, não a conheceu, enquanto
ela não deu à luz um filho, a quem pôs o nome de Jesus” (Mt 1.25).
Assim
sendo, ser conhecido de antemão significa ser escolhido como objeto do amor
redentivo de Deus desde a eternidade. O verbo conhecer tem o sentido bíblico de
conhecer intimamente com amor (Jr 1:5; Os 13:5; Am 3:2; 1Co 8:3; Gl 4:9) e
expressa a peculiar complacência de Deus para com os Seus. É importante
salientar que o texto não informa nada como condição para esse pré-conhecimento
eletivo, sejam fé, amor, obras ou obediência. É uma decisão livre e soberana,
como indica seu uso em 1Pe 1:20, com referência a Jesus.
Muitos
negam que esse pré-conhecimento tenha caráter eletivo, pois ele seria
determinativo e eles insistem que a presciência é meramente constatativa.
Entendem que “eleitos,
segundo a presciência de Deus Pai” (1Pe 1.2) significa tão somente
que Deus previu a fé deles e os elegeu por constatar que eles creriam Nele. Mas
tanto aqui como em Paulo não vemos a fé mencionada como objeto da presciência
divina. Aliás, em lugar algum nas Escrituras fé, amor ou outra coisa qualquer é
indicada como condição para a eleição. Os eleitos são conhecidos por Deus desde
antes da fundação do mundo, para serem objetos do Seu amor e depositários da
Sua graça salvadora, sem consideração de algo neles previsto que os
diferenciasse dos demais.
Predestinados
Ao
conhecimento eletivo de Deus segue-se logicamente a predestinação. Muitas vezes
essa ordem é invertida e a predestinação é vista como tratando-se de eleição e
reprovação, daí a expressão dupla predestinação, bastante comum. Porém, a ordem
bíblica é eleição, seguida da predestinação dos eleitos. Biblicamente falando,
a predestinação diz respeito unicamente aos eleitos, não havendo sentido
bíblico falar em predestinação para a perdição. “Aos que de antemão conheceu, também os predestinou”.
O
termo bíblico predestinou é tradução do verbo proorize, indicativo ativo de proorizo. O prefixo pro- tem o mesmo
sentido apontado no seu uso em proegno,
ou seja, indica uma ação realizada na eternidade. Portanto, não se pode
distinguir uma ordem cronológica entre o conhecimento divino de Seus eleitos e
a predestinação deles, embora uma ordem lógica tenha que ser admitida, com a
eleição precedendo a predestinação, como mencionado. O verbo horizo carrega o
sentido de destinar, determinar, ordenar, designar, estabelecer limites.
Portanto, proorize
significa predeterminar, decidir de antemão, destinar desde a eternidade.
A
questão de quem são os predestinados é bastante clara e não admite
controvérsia: são os que foram conhecidos de antemão. O ponto é a que eles
foram predestinados, e o complemento esclarece que é “para serem conformes à imagem de
seu Filho”. Em outro texto, o destino decidido por Deus para seus
eleitos é “a adoção de
filhos” (Ef 1:5). Isto de forma alguma nega que a predestinação
tenha em vista a salvação, pois esta engloba tudo o que é dito nesta passagem,
do conhecimento prévio à glorificação final. Podemos dizer, então, que a
predestinação é a preordenação divina de todas as coisas visando conduzir seus
eleitos à fé, à adoção de filhos e à progressiva conformação à imagem de Seu
filho, a ser completada na glorificação final.
Se
mais precisa ser dito sobre a predestinação, é destacar sua força, que vem do
fato de que quem predestina é Deus, o Todo-Poderoso! Somos “predestinados segundo o
propósito Daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade”
(Ef 1:11). Sugerir que um predestinado pode vir a apostatar e finalmente se
perder é insultar o conhecimento, a sabedoria e o poder do Senhor. É quebrar a
cadeia inquebrável. Deus decidiu o destino glorioso dos crentes, nada, nem
mesmo os próprios crentes podem alterar esse decreto divino.
Chamados
Conforme
vimos até aqui, os termos pré-conhecidos e predestinados indicam atos
realizados na eternidade passada. Mas agora a cadeia de ouro desce para o tempo
para indicar a realização do propósito divino, ou seja, a etapa em que os
eleitos “são chamados
segundo o seu propósito” (Rm 8.28). Assim, “aos que predestinou, a esses
também chamou”. E como foi com os termos anteriormente tratados,
aqui também requer-se uma compreensão do que seja essa chamada.
“Chamar” é utilizado tanto para se referir a um
convite geral, externo e não eficaz, como a uma chamada pessoal, interna e
eficaz. O desconhecimento desses dois aspectos do chamado leva muitos a
confundirem-se quanto à sua eficácia. Quando Jesus disse que “muitos são chamados, mas poucos,
escolhidos” (Mt 22.14) estabeleceu uma diferença no número dos que
são chamados e dos que são eleitos, sendo aqueles em maior quantidade que
estes. Claramente Ele não estava se referindo ao chamado interior, feito pelo
Espírito Santo. Porém no texto que estamos considerando, todos os que foram
predestinados na eternidade são eficazmente chamados no devido tempo. Aqui, o
número de chamados coincide exatamente com o número dos eleitos. Isso porque,
em Paulo, ekalese,
forma verbal derivada de kaleo,
“chamar”, é
sempre eficaz quando feita por Deus (Rm 4:17; 9:7,11,24; 1Co 1:9; 7:17-24; Gl
1:6,15; 5:8,13; Ef 4:1,4; Cl 3:15; 1Ts 2:12; 4:7; 5:24; 2Ts 2:14; 1Tm 6:12; 2Tm
1:9).
Da
confusão entre o chamamento exterior pelo evangelho e a chamada interior pelo
Espírito Santo resulta a má compreensão e a consequente oposição à doutrina da
graça irresistível. Sim, os homens sempre podem resistir, e de fato resistem,
ao convite geral do evangelho, o qual é acompanhado de promessa, “muitos são chamados”.
Mas nos eleitos desde a eternidade, a graça vence essa resistência, pela
operação milagrosa do Espírito no coração deles, “mas poucos, escolhidos”. Se alguém crê,
é porque foi predestinado a isso, “creram
todos os que haviam sido destinados para a vida eterna” (At 13.48).
Dada
a natureza caída do homem, em que todas as suas faculdades estão afetadas pelo
pecado e o leva a se opor a Deus e a tudo o que Ele oferece, o crente deve ser
imensamente grato a Deus por agir nele, tirando seu coração de pedra e
dando-lhe um coração de carne, capaz de amá-lo e desejá-lo. E a certeza de que
todos os que foram de antemão conhecidos e predestinados na eternidade serão
irresistivelmente chamados em tempo oportuno, é um estímulo à evangelização,
pois Deus chama seus eleitos à fé mediante a pregação do evangelho.
Justificados
É
maravilhoso considerar o que Deus fez até aqui. Elegeu, predestinou e atraiu
para Si pecadores perdidos. Mas como pecadores, transgressores da santa Lei
podem se aproximar dAquele que é Fogo Consumidor, sem serem fulminados? E
olhando por outro ponto de vista, como pode um Deus três vezes santo e
perfeitamente justo receber aqueles que até então viveram em completa rebelião
contra Ele? Neste ponto temos que considerar a justificação, ou seja, “a manifestação da sua justiça no
tempo presente, para Ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em
Jesus” (Rm 3.26).
Todos
os homens são concebidos em pecado e tão logo nascem, começam a cometer seus
próprios pecados, transgredindo a Lei. Isto os torna culpados diante de Deus, e
dignos de morte, morte eterna. A justiça de Deus precisa ser satisfeita, um
preço precisa ser pago. Por isso Jesus morreu na cruz, para pagar o preço, no
lugar e em favor daqueles que foram de antemão conhecidos e predestinados e
agora chamados. Os pecados do Seu povo foram colocados sobre Ele e o preço pago
satisfez a justiça de Deus, possibilitando que Deus se tornasse justificador de
pecadores sem deixar de ser justo. Ao aceitar como satisfatório o sacrifício de
Seu Filho, Deus assegurou a justificação de todos aqueles por quem Jesus
morreu, os quais em tempo oportuno se apropriarão dessa justiça mediante a fé,
pela operação milagrosa do Espírito Santo.
Tão
certo que alguém foi amorosamente conhecido por Deus na eternidade e então
predestinado a ser chamado em tempo e de modo oportuno, assim é certo que será
justificado. O termo edikaiose
é um termo forense e significa o pronunciamento de um veredito sobre uma
pessoa, de que ela atende plenamente os requerimentos da Lei de Deus. E o modo
indicativo do verbo mostra que isso é realizado de uma vez por todas. Dessa
forma, todos os que são chamados e creem em Cristo, são desde agora declarados
inocentes no tribunal de Deus.
Glorificados
Paulo
começa o parágrafo em análise com uma declaração de certeza. “Sabemos que todas as coisas
cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo
o seu propósito” (Rm 8.28). Nos dois versos seguintes ele dá as
razões para essa confiança. “Porquanto”
no original é uma partícula lógica que significa “porque”, justificando a
certeza expressa no verso anterior. E a expressão “a esses também glorificou” é o arremate
dessa certeza, evidenciado pela forma como o apóstolo utiliza o verbo doxazo.
A
glorificação dos justificados é ainda futura, pois se dará na volta do Senhor,
porém Paulo a expressa como já realizada, tal a sua certeza na glorificação dos
que são chamados segundo o Seu propósito. Mais adiante ele dirá que Deus dá “a conhecer as riquezas da sua
glória em vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão, os quais
somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os
gentios” (Rm 9.23–24). Tudo o que acontece na vida do crente foi
preordenado por Deus, visando o bem último daquele que foi chamado, quer dizer,
a sua glorificação ou perfeita conformação à imagem do Filho!
Quando
diz que os que amam a Deus foram predestinados “para serem conformes à imagem de seu Filho”
(Rm 8:29) e para “a
adoção de filhos” (Ef 1:5), o apóstolo tem em mente uma operação
que é iniciada na conversão e que será completada na manifestação em glória do
Senhor. “Amados, agora,
somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos
que, quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque haveremos de
vê-lo como Ele é” (1Jo 3.2). Os que creem em Cristo podem, e devem,
ter certeza de sua eleição na eternidade, de que agora são filhos de Deus, o
que o Espírito lhes testemunha no coração e que finalmente serão feitos iguais
a Jesus. “Estou
plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la
até ao Dia de Cristo Jesus” (Fp 1.6). Aleluia!
Conclusão
Com
Rm 8:29-30 o apóstolo pretende eliminar qualquer dúvida dos que amam a Deus de
que eles são objetos dos cuidados do Senhor, pois foram “predestinados segundo o propósito
daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade”
(Ef 1.11). Esse propósito divino não começa com a conversão deles, nem mesmo no
nascimento ou concepção. Na eternidade passada eles já eram conhecidos por Deus
e objetos de Seu amor. Eles podem crer que Deus “em amor nos predestinou para ele, para a adoção de
filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade”
(Ef 1.4–5), muito antes do mundo existir.
O
tempo não suspende este cuidado meticuloso de Deus para com seus eleitos. Eles
são chamados e justificados e enquanto peregrinam neste mundo “todas as coisas cooperam para o
bem” (Rm 8:28) deles, portanto o apóstolo podia dizer “estou bem certo de que nem a
morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente,
nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer
outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus,
nosso Senhor” (Rm 8.38–39). Todos os aspectos de sua vida estão sob
a amorosa providência de Deus, e mesmo os males redunda no bem deles.
Assim,
não deve causar surpresa a certeza inexorável com que Paulo afirma que eles
entrarão indubitavelmente na glória do Senhor. Esta certeza todos os que foram
justificados ao crerem em Jesus devem ter. “Justificados,
pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo;
por intermédio de quem obtivemos igualmente acesso, pela fé, a esta graça na
qual estamos firmes; e gloriamo-nos na esperança da glória de Deus”
(Rm 5.1–2). Os sofrimentos dessa vida, que afinal são para o bem deles, não
tiram essa certeza. “Porque
para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser
comparados com a glória a ser revelada em nós” (Rm 8.18).
Diante
disso tudo, o que nos resta? Nada, além de irrompermos em louvor a Ele: “Bendito o Deus e Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual
nas regiões celestiais em Cristo” (Ef 1.3)!
Soli
Deo Gloria
Fonte: napec.org
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