Nos últimos dias, surgiram nas redes sociais várias
discussões entre cristãos sobre se seria lícito a um pastor cumular um ofício
político, como o de vereador. Esses debates não focavam o aspecto da laicidade
do Estado — como por vezes se discute, sobretudo entre os progressistas, se deveria
haver algum tipo de impedimento ao exercício de cargo político por pessoas
professadamente religiosas. Em vez disso, a conversa girava em torno da ética
vocacional cristã: se há várias situações em que se admitem ministros
evangélicos bivocacionados (por exemplo, quando exercem o magistério), por que a
vocação política seria uma exceção?
Acredito que podemos encontrar muita sabedoria para
lidar com este assunto no livro A Treatise of the Vocations (“Um tratado das
vocações”), do puritano William Perkins (1558–1602), que apresenta de forma
sistematizada e pretensamente exaustiva uma “teologia prática” das vocações.
A obra se estrutura do seguinte modo: após definir
“vocação” ou “chamado” (“é um certo tipo de vida, ordenado e imposto ao homem
por Deus, para o bem comum”) e distinguir entre vocação geral e particular,
Perkins discorre sobre como fazer uma boa escolha, uma boa entrada, um bom
progresso e umbom término do chamado.
No capítulo sobre a “boa entrada no chamado”,
Perkins responde se é lícito a alguém entrar em duas vocações ao mesmo tempo. Ele
defende que essa dupla vocação é aceitável em alguns casos, mas não em outros.
É lícito exercer duas vocações em três
circunstâncias:
1. Quando o próprio Deus determina a combinação de
dois chamados. O exemplo mais óbvio é o de Melquisedeque, que foi designado rei
e sacerdote.
2. Quando o duplo chamado não contraria as
Escrituras e, ao mesmo tempo, serve ao bem comum em determinadas circunstâncias
peculiares. Perkins usa os exemplos de Eli (sacerdote e juiz), Samuel (profeta
e juiz) e Moisés (profeta e governante civil) e explica que, “naqueles
períodos, ambos os ofícios estavam tão corrompidos que não se podiam achar
homens comuns suficientes para exercer cada chamado separadamente”.
3. Quando dois chamados podem ser cumulados sem se
atrapalharem mutuamente ou impedirem o bem comum. Aqui, Perkins está falando de
vocações que são tipicamente cumuladas, como as de pai e de profissional, mas
também de situações em que necessidades particulares exigem a dupla vocação,
como quando o apóstolo Paulo fazia tendas em Corinto. Perkins diz que, em casos
de similar necessidade, um ministro evangélico pode exercer outro chamado,
desde que isso não seja um empecilho à sua vocação principal nem se torne numa
afronta aos homens.
Em sentido contrário, a dupla vocação se torna
ilícita também em três circunstâncias:
1. Quando Deus dissocia dois chamados por sua
Palavra e mandamento.
2. Quando a prática de um chamado atrapalha a do
outro.
3. Quando a combinação de dois chamados prejudica o
bem comum.
Perkins usa então alguns exemplos em que a dupla
vocação é inaceitável: o Senhor Jesus, sendo Mestre da igreja, se recusou a ser
juiz num conflito entre dois irmãos pela herança; os apóstolos, em virtude dos
deveres do seu chamado, se recusaram a exercer o ofício de diáconos. E conclui:
"A partir disso inferimos que nas cidades,
corporações e sociedades, deve-se tomar cuidado (tanto quanto possível) para
que os diversos ofícios e encargos, sendo em si mesmo pesados e de espécies
distintas, não sejam postos sobre os ombros de um só homem. Pois a execução de
todos eles causa distrações — e as distrações incapacitam até o mais apto homem de desincumbir-se de
um ofício que seja".
O argumento geral de Perkins (com o qual
concordamos) nos permite afirmar duas coisas. Por um lado, não é possível
afirmar que a cumulação dos ofícios de ministro eclesiástico e magistrado civil
seja sempre ilícita, já que eles não foram expressamente dissociados nas
Escrituras. Todavia, por outro, é altamente recomendável que essas duas
vocações permaneçam separadas; pois cada uma envolve grandes atribuições (são
“em si mesmas pesadas”) e há pouca ou nenhuma sobreposição entre si (são “de
espécies distintas).
Portanto, a partir da sabedoria bíblica exposta por
William Perkins, a dupla vocação de ministro e magistrado somente seria
possível em circunstâncias altamente peculiares, nas quais não houvesse número
suficiente de homens aptos para que cada um dos ofícios fosse exercido por
indivíduos diferentes. Fora dessa hipótese incomum, é mais provável que a
cumulação desses chamados seja um obstáculo ao bem comum: sofrerá a igreja,
sofrerá a sociedade.
Fonte: http://blogelectus.blogspot.com.br
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