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quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Em que sentido Jesus é o princípio da Criação?

Ao anjo da igreja em Laodicéia escreve: Estas coisas diz o Amém, a testemunha fiel e verdadeira, o princípio da criação de Deus (Ap.3:14 ARA)

O livro de Apocalipse, como se sabe, é um livro cheio de símbolos e termos figurados, dos quais alguns são aplicados a Cristo. Vemos nesse verso Cristo ser chamado de Amém, algo que não acontece em nenhum outro lugar no NT. Ele também é chamado de Alfa e Ômega, entre outros títulos que recebe.

Mas o que podemos dizer da expressão “o princípio da criação de Deus“? Será que o Apóstolo João quer com isso dizer que Cristo é a primeira criatura de Deus? Na obra Estudo Perspicaz nós encontramos a seguinte afirmação:

A primeira criação de Jeová foi seu “Filho unigênito” (Jo 3:16), “o princípio da criação de Deus”. (Re 3:14) Este, “o primogênito de toda a criação”, foi usado por Jeová na criação de todas as outras coisas, as nos céus e as na terra, “as coisas visíveis e as coisas invisíveis”. (Col 1:15-17) (Estudo Perspicaz, Vol.1, p.583).

Para a Sociedade Torre da Vigia (STV) a expressão “princípio da criação de Deus” significa que Jesus teria sido criado por Deus para ser o criador de todas as outras coisas[1]. Mas, será que essa conclusão está correta? A resposta é não por três motivos: (1) Por que o texto diz princípio da criação e não primeira criação; (2) Por que o texto diz criação e não criatura; (3) Por que o uso da expressão princípio da criação nas escrituras exclui a possibilidade de que esse texto seja entendido como primeira criatura.

Um princípio hermenêutico fundamental para para se interpretar as escrituras é observar atentamente o que a escritura diz. E, é isso que pretendemos aqui quando analisamos esse verso.

1. A diferença entre princípio da criação e primeira criação

Observe que o texto não diz que Cristo é a primeira criação, mas princípio. Em grego João utiliza o termo ρχή (arche) que em nenhum lugar no Novo Testamento é usado no sentido de primeiro“. O termo grego normalmente usado para descrever primeiro é πρωτός (prötós), e eventualmente, o mesmo sentido é auferido com o termo ες (eis; cf. Mt.28.1; Lc.24.1; Tt.3.10; Ap.9.12). Segue-se que seria equivocado inferir que o termo ρχή significa nesse texto que Cristo é a primeira criação.

2. A diferença entre criação e criatura

Outra observação importante a ser feita no texto é que ele não diz que Jesus é a primeira criatura, mas princípio da criação. O termo grego κτίσις (ktísis) é normalmente usado para descrever o ato da criação (Rm.1.20) ou a criação como um todo (Mc.10.6; 13.19; Rm.8.19, 20, 21, 22; Cl.1.15, 23; Hb.9.11; 2Pe.3.4) em contraste com o Criador (Rm.1.25)[2]. Entretanto, o termo mais comum no NT para descrever criatura é κτίσμα (ktísma; cf. 1Tm.4.4; Tg.1.18; Ap.5.13; 8.9[3]), que não é usado em Ap.3.14.

3. A expressão princípio da criação no NT

Outra observação que devemos fazer é que a expressão ρχ τς κτίσεως (he arche tes ktíseös) é usada outras vezes no NT e nunca carrega o sentido de primeira criatura, mas sempre aponta para o início da criação. Em Mc.10.6 nós lemos: “porém, desde o princípio da criação, Deus os fez homem e mulher”. Nesse caso é evidente que o uso da expressão princípio da criação (ρχς κτίσεως) nada tem a ver com a ideia de uma primeira criatura (cf. Mc.13.19). Em 2Pe.3.4, vemos algo similar: “Porque, desde que os pais dormiram, todas as coisas permanecem como desde o princípio da criação“.  Novamente, a expressão princípio da criação (ρχς κτίσεως) não pode significar primeira criatura.

A bem da verdade, uma expressão similar poderia ser usada para descrever o sentido esperado pela STV, como acontece no livro apócrifo de Eclesiástico 36.17 [LXX 36.14], que segundo a Bíblia Ave Maria, deveria ser assim traduzido: “Dai testemunho em favor daqueles que são vossas criaturas desde a origem“. Entretanto, é possível que o texto grego aqui pudesse ser vertido como: “Testemunhe em favor das suas primeiras criaturas” (tradução pessoal). Nesse texto, o autor usa uma expressão similar àquela encontrada em Ap.3.14, entretanto usa o substantivo κτίσμα (ktísma – criatura) no plural, ao invés de κτίσις (ktísis – criação) no singular. Em outras palavras, ainda que fosse possível que tal expressão carregasse o sentido esperado pela STV[4], é altamente improvável que esse seja esse o sentido de Ap.3.14.
Tendo observado atentamente o texto de Ap.3.14, nós concluímos que o sentido do texto deve ser princípio da criação e não primeira criatura pelas razões supracitadas. Entretanto, nós devemos ainda nos perguntar: Em que sentido Cristo é o princípio da criação?

4. Em que sentido Cristo é o princípio da criação?

Em primeiro lugar, devemos observar que a expressão está sendo usada como um título e não como uma descrição. Em Apocalipse João apresenta diversos títulos de Cristo, observe 1.5: “[revelação] da parte de Jesus Cristo, a Fiel Testemunha, o Primogênito dos mortos e o Soberano dos reis da terra“. O texto grego é interessante e segue a tradução em português: cada título acrescido é apresentado com o uso do artigo grego ( μάρτυς, πιστός, πρωτότοκος τν νεκρν κα ρχων τν βασιλέων τς γς ho martus, ho pistós, ho prötótokos, tön nekrön kai ho archen tön basiléön tes ges).
O mesmo fenômeno acontece em Ap.3.14: “o Amém, a testemunha fiel e verdadeira, o princípio da criação de Deus”. Como acontece em 1.5, cada vez que um novo título é acrescido, João coloca o artigo grego ( μήν, μάρτυς πιστς κα ληθινός, ρχ τς κτίσεως το θεου ho amén, ho martus ho pistós kai alëthinós, he arché tës ktíseös tou theou). Com isso queremos dizer que João não a descrever a Cristo, as está apresentado os títulos que possui.

Em segundo lugar, observe que em nenhum lugar no NT o termo Amém é usado para descrever alguém, mas sempre para descrever uma forte afirmação (concordância) com aquilo que é dito (Mt.6.13; Rm.1.25; 9.5; 11.36; Gl.1.5; Ef.3.21; Fp.4.20; Hb.13.21; 1Pe.4.11; 5.11; Ap.1.6; 7.12). Das 129 vezes que o termo é usado em todo o NT, apenas em Ap.3.14 ele é usado como descrição de alguém, nesse caso Cristo. O que faz desse uso especial é o uso do artigo grego no nominativo, masculino e singular[5], apontando que o substantivo aqui é usado em aposição aos outros títulos, e portanto, um título exclusivo de Cristo. No AT, entretanto, o termo hebraico Amem é usado para descrever a Yahweh, e tal expressão foi entendida na LXX como “O Deus Verdadeiro” (Is.64.16: τν θεν τν ληθινόν ton theon ton alëthinon). Talvez o sentido aqui seja uma referência a Cristo como O Verdadeiro em analogia com a etimologia do AT.

Em terceiro lugar, algo similar acontece com o termo princípio, pois não encontramos fora do livro de Apocalipse o termo articulado no nominativo como uma referência pessoal. É possível, entretanto, encontrar o termo em referência a alguém revestido de autoridade, como um governador (Lc.20.20; cf. Lc.12.11 governadores – ARA), àqueles que governam (Tt.3.1), ou até mesmo a autoridades espirituais de modo genérico (Rm.8.38 – potestades; cf. 1Co.15.24; Ef.1.21; 3.10; 6.12; Cl.1.16; 2.10, 15). Esse sentido do texto é também normal e poderia se encaixar perfeitamente no contexto de Apocalipse.
Entretanto, a expressão ρχ (he arché) em referência à Cristo acontece mais duas vezes no próprio livro de Apocalipse. Em 21.6 nós lemos: Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim“. Cristo é apresentado com aquele que é O Princípio e que é O Fim. Nada existe antes dele, nem depois dele haverá. É por isso que em 22.13 nós lemos: “Eu sou o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim“. A mesma construção de 21.6 com o acréscimo da expressão: Primeiro e Último. Essas expressões utilizadas como títulos, afirma que Cristo é aquele que é O Primeiro e aquele que é O Último, clarificando o sentido das expressões O Alfa e Ômega e O Princípio e Fim. Nenhuma linguagem é mais contrária a ideia de que Cristo é criado do que a de Apocalipse. Se ele fosse uma criatura, jamais poderia ser o primeiro, ele seria na melhor das hipóteses o segundo.

Portanto, a expressão ρχ τς κτίσεως (he arche tes ktíseös) deve ser entendida em conformidade com a etimologia do termo dentro do contexto de Apocalipse. Em outras palavras, estamos dizendo que a expressão ρχ (he arché) aqui também denota o conceito normal apresentado no NT, em referência ao princípio da criação. Isso pode denotar dois sentidos:

1.  Originador: Em Apocalipse o termo é usado como um título dado a Cristo. Isso implica que Cristo é o princípio da criação no sentido de que Ele é o Originador da criação[6]. Ou melhor, que Cristo é aquele que inicia a criação, pois ele é O princípio da criação. Esse uso está em completa conformidade com o uso do termo nesse contexto e com a teologia de João, que afirma que sem Cristo nada do que foi criado veio a existir (Jo.1.3).
2.  Soberano: Em Apocalipse é possível que o termo ρχ (he arché o princípio) seja usado a Cristo de modo paralelo a ρχων (hó archon o soberano) em descrição daquele que tem autoridade sobre a criação. Esse uso está em conformidade com o contexto de Apocalipes (Ap.1.5) e com o testemunho da escritura de que Cristo exerce autoridade sobre a criação (Hb.1.2-3).

A primeira opção reflete a tradução da ARA. A segunda da NVI. Particularmente, acredito que o primeiro sentido se conforma mais adequadamente com a terminologia da expressão, com o contexto de Apocalipse e com a Teologia de João. A tentativia de equiparar ρχ (he arché) com ρχων (hó archon) é apenas justificada teologicamente. Seria mais interessante, e talvez mais honesto, assumir o sentido de autoridade que o próprio termo carrega (cf. Lc.20.20; Lc.12.11; Tt.3.1; Rm.8.38; 1Co.15.24; Ef.1.21; 3.10; 6.12; Cl.1.16; 2.10, 15). Entretanto, o contexto não parece apontar para esse sentido aqui.

O sentido normal do termo ρχ (arché) como princípio melhor se ajusta à interconexão morfo-sintática e contextual. Reforça essa ideia o fato de que a expressão τς κτίσεως (tes ktíseös da criação) pode ser identificado como um genitivo subjetivo, que é usado para expressar o objeto ou complemento da ideia verbal do substantivo a que se relaciona[7]. Em outras palavras, a expressão  [Aquele que é] O princípio da criação” pode ser entendido como Aquele que inicia a criação. Sendo assim, Cristo é aquele que inicia a criação[8].
Portanto, devemos concluir que a proposta da STV é mais uma inserção teológica no texto de Apocalipse, do que uma tradução honesta do mesmo. Considerando atentamente ao texto e aos termos usados, concluímos que o sentido proposto nesse verso indica que Cristo é o Originador da Criação.

NOTAS
[1] Observe que nessa explicação o termo outras foi inserido no texto de Col.1.15, para favorecer a opinião da STV sobre a criação de Jesus Cristo. Em outras palavras, o termo outras não faz parte do texto original de Cl.1.15. Para uma análise desse texto visite o artigo Como assim [outras] coisas? publicado no Teologando.
[2] Embora κτίσις eventualmente também seja usado como o resultado da criação, isto é, a criatura (Mc.16.15; Rm.8.39; 2Co.5.17; Hb.4.13), ele o é apenas quando o contexto assim exige.
[3] Na LXX o termo é usado em 3Mac.5.11; Sabedoria 9.2; 14.11; Eclesiástico 38.34, e em todas as vezes o sentido é de criatura não criação.
[4] Embora não seja a opção defendida pelo BDAG (p.138, s.v.3), os editores afirmam que o sentido de “primeira criatura” em Ap.3.14 é provável. O paralelo para essa afirmação é o texto grego de Jó.40.19: ” τοῦτ᾽ ἔστιν ἀρχὴ πλάσματος κυρίου – tout’ estin arche plasmatos kyriou – Este é o princípio da criação do Senhor). Contextualmente, o texto fala sobre a origem do behemoth, traduzido pela ARA como hipopótamo (Jo.40.15). Nesse texto, e nesse contexto, é possível que do sentido de ἀρχὴ (arché) possa se inferir o conceito de primeiro. Entretanto, as mais importantes traduções da LXX não usam esse sentido para esse texto nesse contexto. A tradução de C.Benton usa o conceito de “Chefe [cabeça] da Criação”, bem como a New English Translation of the Septuagint. O que é possível, entretanto, é que Jó use a expressão  aqui em referência à Gn.1.24, que descreve que behema (i.e. gado) como primeira criatura. Se esse é o pano de fundo conceitual, então a tradução é possível.
[5] Contraste isso com 1Co.14.16 e 2Co.1.20, nos quais o artigo (anafórico) é usado com o artigo nominativo, neutro e singular.
[6] Observe que o léxico BDAG (p.138, s.v.6) define que Cristo é a causa primária da criação. Entretanto, a expressão, por ser altamente filosófica, poderia levar alguém a não usá-la. Portanto, optamos aqui pelo termo incomum Originador, com a intenção de apresentar aquele que é o responsável pelo início.
[7] BDF §170-178; Wallace, Greek Grammar Beyond the Basics, p.112-121, especialmente, p.116-119; Smyth §1339; Moulton-Turner, A Grammar of the New Testament, p.72; Alexander Buttmann, A Grammar of the New Testament Greek, p.154-157;
[8] Esse sentido está em completa consonância com a literatura judaica de sabedoria que usa ἀρχὴ (arche) como sinônimo de αἰτία (origem).


Fonte: https://marceloberti.wordpress.com
Imagem: Google

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