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segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

A história, Jesus e a Trindade

Um dos desafios de se manter um blog de teologia na Internet, é responder algumas perguntas teológicas de pessoas que não participam da fé cristã. É muito difícil estabelecer um campo conceitual em comum para dialogar sobre um assunto que temos como verdade com pessoas que a priori a rejeitam. Nesses pouco mais de oito anos de Teologando [1], já aprendi muito nesses diálogos, e acredito que ainda posso aprender mais.

Certo dia, um visitante não cristão me fez a seguinte pergunta:
Da para se concluir por meio do que temos disponíveis nos evangelhos que os primeiros cristãos todos judeus acreditavam mesmo que aquele que ali estava com eles era de fato o Deus todo poderoso?

Quando li essa questão, fiquei intrigado em como a complexidade do assunto passou desapercebida para aquele que fazia a questão. Talvez, desapercebidamente, esse leitor do Teologando me pergunta sobre a relação dos eventos históricos narrados nos evangelhos sobre Jesus e a posterior doutrina católica da Trindade. Para ele respondi:

A bem da verdade, durante o ministério público de Cristo, nem mesmo seus seguidores mais próximos compreenderam exatamente quem ele era. Nos evangelhos nós encontramos claras histórias de que nem mesmo os apóstolos conseguiram compreender a Cristo completamente. D.A. Carson afirma que deve-se assumir que durante o ministério público de Jesus os seus discípulos tinham uma “substancial má compreensão” de quem Ele era (Carson, Gospel of Matthew, p.449). O caso mais evidente desse fato é a própria confissão de Pedro (Mat. 16.16) que é seguida de sua condenação por Cristo (Mat.16.22-23), exatamente por não entender quem Ele era, nem o que vinha fazer.

Entretanto, algo deve ter acontecido em algum momento da vida dos apóstolos que fez com que eles compreendessem melhor quem de fato Cristo era, e uma boa leitura no NT demonstra que esse evento foi a Páscoa de 33 d.C., quando os discípulos encontraram o Cristo ressurreto. Esse evento mudou completamente a perspectiva que tinham a respeito das escrituras, de Deus e de Cristo.

Pouco tempo após a morte e ressurreição de Cristo, os apóstolos começaram a apresentá-lo como κυριός (Senhor), entre os próprios judeus que usavam esse mesmo termo grego para descrever a YHWH. Não apenas isso, mas também começaram a atribuir textos do AT que faziam referência a YHWH a Jesus Cristo (Rom.10.9, 13; Joel.2.32), como o Dia de YHWH dos profetas é agora o Dia de Cristo (cf. saías 2:12; 13:6; 13:9; 34:8; Filipenses 1:10; 2:16; II Tessalonicenses 2:2). O próprio Pedro, pouco antes de morrer, afirma que Cristo é Deus e Salvador (2Pe.1.1), Senhor e Salvador (2Pe.1.11). O mesmo acontece com João, que afirma que Cristo não apenas existia antes de tudo, que estava com o Pai antes de tudo ser criado, mas que Ele mesmo era Deus (Jo.1.1). João participou de todo o ministério terreno de Cristo, mas apenas após a ressurreição é que ele entendeu quem de fato Cristo era. Para João, aquele carpinteiro com quem dividiu três anos de sua vida, Aquele a quem ele viu cansado, com fome, dormindo era o criador do universo (Jo.1.3). O evento da ressurreição mudou completamente a percepção dos apóstolos sobre quem Ele era. É por isso que durante o ministério público de Cristo, fielmente narrado pelos próprios apóstolos, contém poucas informações explícitas da divindade de Cristo, muito embora alguns dos eventos tenham sido claramente influenciados por uma reflexão teológica pós-pascal, como o próprio batismo, transfiguração e vários dos milagres.

Paulo também é interessante. Ele não andou com Cristo e em suas cartas falou pouquíssimo sobre o ministério terreno de Cristo. Entretanto, demonstrou como a tradição apostólica passou a identificá-lo como Senhor e Deus desde os momentos mais primitivos. Em suas cartas ele preserva antigos credos cristão que eram cantados como hinos pelas comunidades primitivas. Em Fil.2.6-11, nós vemos que a comunidade primitiva já entoava a Cristo hinos teológicos que afirmavam sua divindade. Aliás, eles acreditavam que após a ascensão de Cristo, ele recebeu o nome que está acima de todo nome, YHWH (!). Em Col 1.25-20, nós vemos que a comunidade cristã primitiva já reconhecia que Cristo como a imagem do Deus invisível e o primogênito da criação, criador de todas as coisas, antes de todas as coisas e o responsável pela manutenção e existência de todas as coisas. No mesmo hino nós vemos que a comunidade primitiva reconhecia que em Cristo residia toda a plenitude (v.19). É por isso que Paulo fala ousadamente que em Cristo habita corporalmente a plenitude da divindade (Col.2.9).

Mais impressionante ainda é o autor da carta aos Hebreus, um cristão da segunda geração (Heb.2.3), que atribui a Cristo textos que foram originalmente usados para descrever o próprio Deus (Hb.1.8; Sal.45.6), e afirma que o próprio Pai ordena a adoração do Filho (Hb.1.6). Ele também acreditava que Cristo era o criador de todas as coisas (Hb.1.2) e a expressão exata da substância [πόστασις] de Deus (Hb.1.3).

Em outras palavras, após a ressurreição de Cristo a reflexão teológica dos apóstolos passou a perceber a Cristo com quem Ele de fato é. Não apenas o pobre carpinteiro que não tinha onde reclinar a cabeça, mas também o Criador incriado de todas as coisas, o Senhor, Salvador e Deus.

Ao ler essa mensagem, meu interlocutor me perguntou:
Será que Paulo como vc citou, entende a divindade de Jesus dentro do contexto trinitário? A maior oportunidade ele teve quando definiu o Deus a qual adorava em 2 cor 8:6, ele disse que tal Deus era composto por um so elemento, a saber o pai.

Em outras palavras, mas sera que Paulo acreditava na doutrina da Trindade? Novamente, a pergunta carrega em si um nível de complexidade histórica, teológica e doutrinária que me impelia a considerar a pergunta como sendo digna de resposta. Por isso respondi:

Em primeiro lugar, é necessário estabelecer alguns parâmetros para avaliar suas afirmações sobre a teologia de Paulo. (1) É inegável que Paulo jamais usou a terminologia teológica trinitária da teologia e concílios do quarto século. Não encontramos no registro paulino qualquer uso do termo substância, pessoa como descrição da divindade, do mesmo modo que nem se quer o termo trindade é usado. (2) Por outro lado, Paulo nunca escreveu um tratado teológico para descrever sua percepção da divindade do ponto de vista ontológico. Em suas cartas, eventualmente usou conceitos teológicos para defender a teologia cristã e promover sua ética; (3) Por isso, é absolutamente ingênuo esperar que em um único verso você encontre o resumo de toda percepção teológica da divindade. É exatamente em função da multiplicidade de afirmações relacionadas a divindade nas cartas de Paulo, que encontramos fundamento para a descrição embrionária da teologia trinitária.

Por exemplo, o evento soteriológico da perspectiva paulina é expresso diversas vezes tendo as atividades do Pai, Filho e ES equiparadas. Por exemplo, em Ef.1.3-14, o evento soteriológico é descrito como necessariamente relacionado às atividades do Pai, Filho e ES: O Pai determina, elege e predestina; Filho redime; o ES garante a salvação. Esse entendimento é também sintetizado em algumas das afirmações credais, como por exemplo em 2Cor.13.14, no qual o amor do Pai, a graça do Filho e a comunhão do ES são equiparadas na descrição do evento soteriológico. Nessas afirmações, nenhuma afirmação objetiva é feita a respeito da divindade do Filho ou do ES, mas o simples fato de terem seu papel fundamental equiparado na aplicação teológica da Heilsgeschichte, sugere que o seu pensamento era primariamente trinitário. É interessante notar também que em 2Cor.13.14, percebemos a teologia paulina entendia a experiência cristã como trinitária em sua essência, pois o cristão experimenta tanto o amor, como a graça e a comunhão divina, nas distintas pessoas do Pai, Filho e ES. Isso é também reforçado em 1Cor.12.4-6, que afirma que do mesmo modo que existe apenas um Deus, um só Senhor (cf. 1Cor.8.6), existe também um só Espírito. Vale demonstrar que o argumento apresentado por Paulo aqui demonstra que a diversidade das atividades e ministério da igreja refletem a natureza diversa e ativa da Divindade, expressa nos ministérios do Pai, Filho e ES. Um argumento similar é apresentado também em Ef 4.4-6, que também distingue as atividades fundamentais do Pai, Filho e ES no contexto da diversidade da comunidade primitiva. Comentando sobre esses versos, Gordon Fee afirma:

“O primeiro e significativo ponto a se fazer sobre estas (…) passagens é que, em cada uma delas, Paulo está enfatizando, e, portanto, não desistindo, da realidade teológica básica de sua tradição: não há somente um Deus, e somente esse Deus é Deus. Mas o segundo ponto a salientar é que esta ênfase ocorre principalmente em contextos onde ele está deliberadamente a expandir a identidade do Deus único para incluir o “único Senhor” e “um só Espírito.” E exatamente o reconhecimento desta realidade que levou a igreja primitiva a lutar com os dados bíblicos tão profundamente (…) O que parece ser certo a partir dos dados da teologia paulina é a inevitabilidade de falar de Deus, pelo menos em termos da ’Trindade econômica’ (…) O que Paulo força sobre nós e a dupla realidade que deve ser afirmada tenazmente – se alguém quiser ser fiel ao próprio apóstolo – e deve ser afirmada ainda que não se resolva completamente a tensão na qual são defendidas: Existe apenas um único Deus, e o único Deus inclui, simultaneamente e de modo completamente divino, o Pai, o Filho e o Espírito Santo” [Gordon D. Fee, Pauline Christology: An Exegetical-Theological Study (Peabody, MA: Hendrickson Publishers, 2007), 593.]
Evidentemente o diálogo não tinha acabado, mas a próxima pergunta me parecia tão intrigante, que resolvi publicar e responder, veja:

Berti vc adimite que antes da ressureiçao do mestre é pouco provavel que eles não encaressem ele como O Deus todo poderoso, entao porque os trinitarios costumam citar textos onde Jesus recebe proskneo antes de sua morte para provar que ele era adorado com O Deus?
Novamente, eu achei que a pergunta encontrava uma certa complexidade desconhecida pelo meu interlocutor, e de forma resumida respondi:

Sobre as questões relacionadas à adoração de Cristo durante seu ministério terreno, novamente, algumas observações podem ajudar-lhe a colocar em perspectiva a opinião trinitária. Primeiro, o evento e histórico e registro inspirado não são a mesma coisa. Durante o ministério de Cristo os discípulos são apresentados como confusos sobre quem de fato Cristo era, fato que eles mesmos assumem nos evangelhos. Entretanto, o mesmo não acontece quando os mesmos se dedicam a explicar quem Ele de fato nos evangelhos que escreveram. Todos os evangelhos foram escritos da perspectiva pós-páscoa, quando a compreensão fundamental dos apóstolos já havia sido transformada. É por isso que João pode iniciar seu evangelho afirmando a divindade de Cristo (1.1), ou Marcos encerrar o seu com o mesmo reconhecimento (15.39), ou até mesmo Mateus sugerir que Cristo recebeu adoração de seus seguidores (28.9), ou ainda refletir teologicamente sobre o evento da “reverência” dos magos do oriente e descrever o evento em termos de adoração de Cristo (2.11), ou ainda, encerrar seu evangelho com a afirmação mais contundente da triunidade divina (28.20). Nesse sentido, nós lemos a percepção teológica dos apóstolos, e não apenas biografias teologicamente desinteressadas na definição de quem Cristo de fato era.

Caso você queira conhecer mais como eu entendo a questão da adoração de Cristo nos evangelhos, por favor, leia o artigo Adorar a Jesus é Idolatria. Nesse artigo apresento um argumento mais abrangente do uso do termo προσκυνέω no Grego Clássico, Septuaginda, Grego Koinê fora do NT, nos Pais Apostólicos e especialmente no NT. Aqueles que afirmam que προσκυνέω nunca tem sentido religioso quando se referem a Cristo, tem um longo caminho para defender suas opiniões ante as evidências léxicas do uso do termo grego no primeiro século.

Notas
[1] Blog pessoal do autor – Teologando


Fonte: www.napec.org

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