A
harmonia dos Evangelhos
“Não
penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir, mas cumprir.
Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, de modo nenhum
passará da lei um só i ou um só til, até que tudo seja cumprido. Qualquer,
pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos
homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e
ensinar será chamado grande no reino dos céus”. (Mateus 5.17-19)
“Não
penseis”. Em relação à perfeição de Sua vida, Cristo poderia, com justiça,
ter dito que Ele veio cumprir a Lei. Mas aqui Ele trata de doutrina, não de
vida. Quando Cristo proclamou depois, “É chegado a vós o reino de Deus”
(Mt 12.28), Ele levou as mentes dos homens a um estado de expectativa incomum e
até mesmo admitiu discípulos por meio do batismo. É provável que isso tenha
feito com que as mentes dos homens se encontrassem em um estado de suspense e
dúvida, ansiosos para saber que novidade era aquela. Por este motivo, Cristo
declarou que Sua doutrina está muito longe de contrariar a Lei. Pelo contrário,
ela concorda perfeitamente com a Lei e os Profetas e não somente isso, mas trás
o pleno cumprimento destes.
Parece
que havia dois motivos principais que o levaram a anunciar essa concordância
entre a Lei e o Evangelho. Assim que qualquer novo método de ensino aparece, o
povo imediatamente pensa que tudo está sendo subvertido. A pregação do
Evangelho, como eu acabei de mencionar, tendia a criar a expectativa de que a
Igreja assumiria uma forma completamente diferente da anterior. Pensaram que o
governo antigo e costumeiro seria abolido. Uma opinião assim era, em muitos
sentidos, perigosa. Adoradores devotos jamais teriam abraçado o Evangelho caso
fosse uma revolta contra a Lei. Ao mesmo tempo, espíritos levianos e
turbulentos teriam ansiosamente aproveitado a situação para lançar fora toda
religião. Pois nós conhecemos o quanto pessoas apressadas estão sempre prontas
para se envolver com escândalos insolentes quando há qualquer coisa nova.
Além
disso, Cristo viu que a maior parte dos judeus eram profanos e degenerados,
apesar de professarem obedecer a Lei. A condição do povo estava tão decadente,
tudo estava tão cheio de tantas corrupções e a negligencia ou malícia dos
sacerdotes havia extinguido de tal forma a pura luz da doutrina, que não havia
mais reverência a Lei. Mas se uma nova doutrina houvesse sido introduzido, que
destruísse a autoridade da Lei e os Profetas, a religião teria sofrido um dano
terrível. Isso parece ter sido o primeiro motivo pelo qual Cristo declarou que
Ele não veio destruir a Lei. De fato, o contexto deixa isso abundantemente
claro. Pois Ele imediatamente diz, como forma de confirmação, que é impossível
mesmo que nem um ponto sequer da Lei venha a falhar – e anuncia uma maldição
contra os mestres que não trabalham fielmente para manter sua autoridade.
O
segundo motivo era pra refutar a calunia maligna que Ele sabia que era
levantada contra Ele pelos ignorantes e indoutos. Esta acusação, evidentemente,
havia sido feita contra sua doutrina pelos escribas. Pois Ele imediatamente
direciona seu discurso contra eles. Precisamos ter em mente qual era o
propósito de Cristo. Apesar d’Ele convidar e exortar os judeus, Ele também os
chama para a obediência a Lei. Além disso, Ele corajosamente refutou as
acusações e calunias desprezíveis que seus inimigos usavam com o objetivo de
levantar suspeitas contra Sua pregação.
Se
quisermos reformar questões que se encontram em estado de desordem, devemos
sempre agir com a mesma prudência e moderação, de forma a convencer o povo que
não somos contrários à eterna Palavra de Deus nem queremos introduzir alguma
novidade contrária a Escritura. Precisamos cuidar de que nenhuma suspeita de
contradição cause dano à fé dos piedosos e que homens apressados não se animem
com a ideia de novidade. Em resumo, devemos trabalhar para se opor ao desprezo
profano contra a Palavra de Deus e para prevenir que a religião seja odiada
pelos ignorantes. A defesa que Cristo fez, para libertar Sua doutrina de
calunias, deve nos encorajar, quando somos alvos das mesmas calunias. A mesma
acusação foi levantada contra Paulo, que ele era um apostata da Lei de Deus (At
21.21) e não devemos, portanto, ficarmos surpresos se os papistas trabalham, da
mesma maneira, para nos fazer odiáveis. Conforme o exemplo de Cristo, devemos
esclarecer falsas acusações e, ao mesmo tempo, professar a verdade livremente,
ainda que nos exponha a acusações injustas.
“Eu
não vim abolir a Lei”. Deus, de fato, prometeu um novo pacto na vinda de
Cristo; mas, ao mesmo tempo, mostrou que não seria diferente do primeiro, mas
que, ao contrário, seu objetivo era o de sancionar perpetuamente o pacto que
ele havia feito desde o principio com seu próprio povo.
“Porei
a minha Lei no seu interior… e nunca mais me lembrarei de seus pecados”.
(Jeremias 31.33)
Por
estas palavras, Ele está tão longe de se apartar do pacto anterior que, ao
contrário, Ele declarou que seria confirmado e ratificado quando fosse sucedido
pelo novo. Este também é o sentido das palavras de Cristo, quando Ele diz que
Ele veio cumprir a Lei, pois Ele, de fato, cumpriu ao vivificar por Seu
Espírito a letra morta e assim demonstrou a realidade daqui que aparecia
somente por figuras.
Em
relação à doutrina, não devemos imaginar que a vinda de Cristo nos livrou da
autoridade da Lei. Pois a Lei é a regra de uma vida devota e santa e, portanto,
é tão imutável quanto a justiça de Deus que ela revela, sendo constante e
uniforme. Em relação às cerimonias, há alguma aparência de mudança, mas foi
somente o uso das cerimonias que foi abolido, pois o significado foi ainda mais
confirmado. A vinda de Cristo não retirou nada mesmo das cerimonias, mas, ao
contrário, confirmou-as ainda mais ao exibir a verdade das sombras, pois quando
vemos seu efeito completo, reconhecemos que não são vãs ou inúteis. Aprendamos,
então, a manter esse união sagrada entre a Lei e o Evangelho que muitos tentam
quebrar inapropriadamente. Pois contribui em muito para o Evangelho quando
aprendemos que não é outra coisa se não o cumprimento da Lei, de forma que
ambos, em concordância, declaram que Deus é seu Autor.
“Até
que o céu e a terra passem”. Lucas expressa isso de forma um pouco
diferente, mas dizendo o mesmo, que “É mais fácil passar o céu e a terra do
que cair um til da lei”. (Lc 16.17) O propósito de Cristo, nas duas
passagens, era o de ensinar que a verdade da Lei e de cada parte dela está
segura, e que nada tão duradouro pode ser encontrado no mundo inteiro. Alguns
se prendem em analises engenhosas da palavra “até”, como se o passar do céu e
da terra, que acontecerá no último dia, no dia do juízo, fosse pôr um fim a Lei
e os Profetas. Tão certo quanto “havendo profecias, serão aniquiladas;
havendo línguas cessarão” (I Co 13.8), eu acredito que a Lei escrita e sua
exposição chegarão ao fim; mas como eu sou da opinião de que Cristo falou de
maneira mais simples, escolho não alimentar os ouvidos dos leitores com tais
complexidades. É suficiente que entendamos simplesmente que é mais fácil o céu
quebrar em pedaços e o mundo inteiro se tornar uma massa de confusão do que a
estabilidade da Lei chegar ao fim. Mas o que significa que cada parte da Lei se
cumprirá até o menor ponto? Pois, verificamos que até mesmo os que foram
regenerados pelo Espírito de Deus estão muito longe de guardar a Lei de Deus
perfeitamente. Eu respondo que a expressão “não passará” não se refere a vida
dos homens, mas a perfeita verdade e doutrina. “Não há nada na Lei que não
seja importante, nada que foi posto lá aleatoriamente; portanto, é impossível
que uma letra sequer pereça”.
19. “Qualquer,
pois, que violar”. Aqui Cristo fala expressamente do mandamento de vida, ou
as dez palavras, que todos os filhos de Deus devem considerar como sendo a regra
de suas vidas. Ele declara que são mestres falsos e enganadores aqueles que não
ensinam seus discípulos a obediência a Lei e que são indignos de ocupar um
lugar na Igreja aqueles que de alguma maneira enfraquecem a autoridade da Lei;
e, por outro lado, que são os mais honestos e fiéis ministros de Deus que,
tanto em palavra quanto em exemplo, ensinam a guardar a Lei. O menor dos
mandamentos é uma expressão usada em acomodação com ao julgamento dos homens.
Apesar dos mandamentos não terem o mesmo peso (quando são comparados entre si,
alguns tem menos e outros mais), não somos livres para pensar que seja pequeno
qualquer coisa que aprove ao Legislador mandar. Quão grande é o sacrilégio
tratar com desprezo qualquer coisa que proceda de Sua boca sagrada! Isso é
rebaixar Sua importância ao nível das criaturas. Sendo assim, quando Nosso
Senhor os chama de mandamentos menores, é uma forma de acomodação.
“Ele
será chamado de menor”. Isso é uma alusão ao que Ele acabara de dizer sobre
os mandamentos e o significado é óbvio. Aqueles que desprezam a doutrina da
Lei, qualquer sílaba que seja, será rejeitado como o menor dos homens.
O Reino
de Deus significa a renovação da Igreja, ou a condição próspera da Igreja, como
a que começou a aparecer pela pregação do Evangelho. É neste sentido que Cristo
nos diz que “o menor no reino de Deus é maior do que João”. (Lc 7.28) O
significado desta expressão é que Deus, ao restaurar o mundo pela mão de Seu
Filho, estabelece o Reino completamente. Cristo declara que, quando Sua Igreja
fosse renovada, nenhum mestre deveria ser aceito nela se não aqueles que são
expositores fiéis da Lei e que trabalham para manter sua doutrina inteiramente.
Mas alguém poderá perguntar se as cerimonias não estavam entre os mandamentos
de Deus que temos a obrigação de agora observar. Deus estabeleceu as cerimonias
para que seu uso externo fosse temporário e seu significado eterno. Não
transgridem as cerimônias aqueles que omitem as sombras, mas guardam o que
significam. Mas se Cristo baniu de seu Reino todos os que acostumam os homens a
qualquer desprezo pela Lei, quão monstruosa é a estupidez daqueles que não tem
vergonha de remir, por uma indulgência sacrílega, o que Deus exige estritamente
e, sob a pretensão de pecado venial, lançam fora a justiça da Lei! Novamente,
devemos observar a descrição que ele dá de mestres bons e justos, que exortam
os homens a guardar a Lei, não somente por palavras, mas principalmente com um exemplo
de vida.
***
Tradução: Frank Brito
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