Os evangélicos no Brasil nunca conseguiram se livrar totalmente da
influência do Catolicismo Romano. Por séculos, o Catolicismo formou a
mentalidade brasileira, a sua maneira de ver o mundo (“cosmovisão”). O
crescimento do número de evangélicos no Brasil é cada vez maior – segundo o
IBGE, somos 43 milhões neste ano de 2012 – mas há várias evidências de que boa
parte dos evangélicos não tem conseguido se livrar da herança católica. É um
fato que a conversão verdadeira (arrependimento e fé) implica uma mudança
espiritual e moral, mas não significa necessariamente uma mudança na maneira
como a pessoa vê o mundo.
Alguém pode ter sido regenerado pelo Espírito e ainda continuar, por um tempo, a enxergar as coisas com os pressupostos antigos. É o caso dos crentes de Corinto por exemplo. Alguns deles haviam sido impuros, idólatras, adúlteros, efeminados, sodomitas, ladrões, avarentos, bêbados, maldizentes e roubadores. Todavia, haviam sido lavados, santificados e justificados “em o nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus” (1 Co 6.9-11), sem que isso significasse que uma mudança completa de mentalidade houvesse ocorrido com eles.
Na primeira carta que lhes escreve, Paulo revela duas áreas em que eles continuavam a agir como pagãos: na maneira grega dicotômica de ver o mundo dividido em matéria e espírito (que dificultava a aceitação entre eles das relações sexuais no casamento e a ressurreição física dos mortos – capítulos 7 e 15) e o culto à personalidade mantido para com os filósofos gregos (que logo os levou a formar partidos na Igreja em torno de Paulo, Pedro, Apolo e mesmo o próprio Cristo – capítulos 1 a 4). Eles eram cristãos, mas com a alma grega pagã. Da mesma forma, creio que grande parte dos evangélicos no Brasil tem a alma católica.
Antes de passar às argumentações, preciso esclarecer um ponto. Todas as tendências que eu identifico entre os evangélicos como sendo herança católica, no fundo, antes de serem católicas, são realmente tendências da nossa natureza humana decaída, corrompida e manchada pelo pecado, que se manifestam em todos os lugares, em todos os sistemas e não somente no Catolicismo. Como disse o reformado R. Hooykas, famoso historiador da ciência, “no fundo, somos todos romanos” (Philosophia Liberta, 1957). Todavia, alguns sistemas são mais vulneráveis a essas tendências e as absorveram mais que outros, como penso que é o caso com o Catolicismo no Brasil. E que tendências são essas?
1) O gosto por bispos e apóstolos – Na Igreja Católica, o sistema papal impõe a
autoridade de um único homem sobre todo o povo. A distinção entre clérigos
(padres, bispos, cardeais e o papa) e leigos (o povo comum) coloca os
sacerdotes católicos em um nível acima das pessoas normais, como se fossem
revestidos de uma autoridade, um carisma, uma espiritualidade inacessível, que
provoca a admiração e o espanto da gente comum, infundindo respeito e
veneração. Há um gosto na alma brasileira por bispos, catedrais, pompas,
rituais. Só assim consigo entender a aceitação generalizada por parte dos próprios
evangélicos de bispos e apóstolos autonomeados, mesmo após Lutero ter rasgado a
bula papal que o excomungava e queimá-la na fogueira. A doutrina reformada do
sacerdócio universal dos crentes e a abolição da distinção entre clérigos e
leigos ainda não permearam a cosmovisão dos evangélicos no Brasil, com poucas
exceções.
2) A ideia de que pastores são mediadores entre Deus e os homens – No Catolicismo, a Igreja é mediadora entre Deus
e os homens e transmite a graça divina mediante os sacramentos, as indulgências,
as orações. Os sacerdotes católicos são vistos como aqueles através de quem
essa graça é concedida, pois são eles que, com as suas palavras, transformam,
na Missa, o pão e o vinho no corpo e no sangue de Cristo; que aplicam a água
benta no batismo para remissão de pecados; que ouvem a confissão do povo e
pronunciam o perdão de pecados. Essa mentalidade de mediação humana passou para
os evangélicos, com poucas mudanças. Até nas igrejas chamadas históricas, os
crentes brasileiros agem como se a oração do pastor fosse mais poderosa do que
a deles e como se os pastores funcionassem como mediadores entre eles e os
favores divinos. Esse ranço do Catolicismo vem sendo cada vez mais explorado
por setores neopentecostais do evangelicalismo, a julgar por práticas já
assimiladas como “a oração dos 318 homens de Deus”, “a prece poderosa do bispo
tal”, “a oração da irmã fulana, que é profetisa”, etc.
3) O misticismo supersticioso no apego a objetos sagrados – O Catolicismo no Brasil, por sua vez influenciado
pelas religiões afro-brasileiras, semeou misticismo e superstição durante
séculos na alma brasileira: milagres de santos, uso de relíquias, aparições de
Cristo e de Maria, objetos ungidos e santificados, água benta, entre outros.
Hoje, há um crescimento espantoso, entre setores evangélicos, do uso de copo
d’água, rosa ungida, sal grosso, pulseiras abençoadas, pentes santos do kit de
beleza da rainha Ester, peças de roupa de entes queridos, oração no monte, no
vale; óleos de oliveiras de Jerusalém, água do Jordão, sal do Vale do Sal,
trombetas de Gideão (distribuídas em profusão), o cajado de Moisés... é
infindável e sem limites a imaginação dos líderes e a credulidade do povo. Esse
fenômeno só pode ser explicado, ao meu ver, por um gosto intrínseco pelo misticismo
impresso na alma católica dos evangélicos.
4) A separação entre sagrado e profano – No centro do pensamento católico existe a
distinção entre natureza e graça, idealizada e defendida por Tomás de Aquino,
um dos mais importantes teólogos da Igreja Católica. Na prática, isso
significou a aceitação de duas realidades coexistentes, antagônicas e frequentemente
irreconciliáveis: o sagrado, substanciado na Santa Igreja, e o profano, que é
tudo o mais no mundo lá fora. Os brasileiros aprenderam durante séculos a não
misturar as coisas: sagrado é aquilo que a gente vai fazer na Igreja: assistir
Missa e se confessar. O profano – meu trabalho, meus estudos, as ciências –
permanece intocado pelos pressupostos cristãos, separado de forma estanque. É a
mesma atitude dos evangélicos. Faltamos uma mentalidade que integre a fé às
demais áreas da vida, conforme a visão bíblica de que tudo é sagrado. Por
exemplo, na área da educação, temos por séculos deixado que a mentalidade
humanista secularizada, permeada de pressupostos anticristãos, eduque os nossos
filhos, do ensino fundamental até o superior, com algumas exceções. Em outros
países, os evangélicos têm tido mais sucesso em manter instituições de ensino
que, além de serem tão competentes como as outras, oferecem uma visão de mundo,
de ciência, de tecnologia e da história oriunda de pressupostos cristãos. Numa
cultura permeada pela ideia de que o sagrado e o profano, a religião e o mundo,
são dois reinos distintos e frequentemente antagônicos, não há como uma visão integral
surgir e prevalecer, a não ser por uma profunda reforma de mentalidade entre os
evangélicos.
5) Somente pecados sexuais são realmente graves – A distinção entre pecados mortais e veniais
feita pelo catolicismo romano vem permeando a ética brasileira há séculos.
Segundo essa distinção, pecados considerados mortais privam a alma da graça
salvadora e a condenam ao inferno, enquanto que os veniais, como o nome já
indica, são mais leves e merecem somente castigos temporais. A nossa cultura se
encarregou de preencher as listas dos mortais e dos veniais. Dessa forma,
enquanto se pode aceitar a “mentirinha”, o jeitinho, o tirar vantagem, a
maledicência, etc., o adultério se tornou imperdoável. Lula foi reeleito
cercado de acusações de corrupção. Mas, se tivesse ocorrido uma denúncia de
escândalo sexual, tenho dúvidas de que teria sido reeleito ou de que teria sido
reeleito por uma margem tão grande. Nas igrejas evangélicas – onde se sabe pela
Bíblia que todo pecado é odioso e que quem guarda toda a lei de Deus e quebra
um só mandamento é culpado de todos – é raro que alguém seja disciplinado,
corrigido, admoestado, destituído ou despojado por pecados como mentira,
preguiça, orgulho, vaidade, maledicência, entre outros. As disciplinas
eclesiásticas acontecem via de regra por pecados de natureza sexual, como
adultério, prostituição, fornicação, adição à pornografia, homossexualismo,
etc., embora até mesmo esses estão sendo cada vez mais aceitáveis aos olhos
evangélicos. Mais um resquício de catolicismo na alma dos evangélicos?
O que é mais surpreendente é que os evangélicos no Brasil estão entre os
mais anticatólicos do mundo. Só para ilustrar (e sem entrar no mérito dessa
polêmica), o Brasil é um dos países onde convertidos do catolicismo são
rebatizados nas igrejas evangélicas. O anticatolicismo brasileiro, todavia, se
concentrou apenas na questão das imagens e de Maria e em questões éticas como
não fumar, não beber e não dançar. Não foi e não é profundo o suficiente para
fazer uma crítica mais completa de outros pontos que, por anos, vêm moldando a
mentalidade do brasileiro, como mencionei acima. Além de uma conversão dos
ídolos e de Maria a Cristo, os brasileiros evangélicos precisam de conversão na
mentalidade, na maneira de ver o mundo. Temos de trazer cativo a Cristo todo
pensamento, e não somente os nossos pecados. Nossa cosmovisão precisa também de
conversão (2 Co 10.4-5).
Quando vejo
o retorno de grandes massas ditas evangélicas às práticas medievais católicas
de usar no culto a Deus objetos ungidos e consagrados, procurando para si
bispos e apóstolos, imersas em práticas supersticiosas, me pergunto se, ao
final das contas, o neopentecostalismo brasileiro não é, na verdade, um filho
da Igreja Católica medieval, uma forma de neocatolicismo tardio que surge e
cresce em nosso país, onde até os evangélicos têm alma católica.
Por: Augustus Nicodemus
Fonte: Editora Fiel
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