por
Anthony Hoekema
O que a Bíblia ensina sobre regeneração? Já no Velho Testamento somos ensinados que só Deus pode transformar radicalmente o que seja necessário para capacitar seres humanos caídos a fazer o que é agradável aos Seus olhos. Em Deuteronômio 30:6, encontramos nossa renovação espiritual figurativamente descrita como circuncisão do coração: "O Senhor teu Deus circuncidará o teu coração, e o coração da tua descendência, para amares ao Senhor teu Deus de todo teu coração e de toda a alma, para que vivas". O coração é o cerne íntimo da pessoa e a Bíblia nos ensina que Deus nos limpa interiormente antes que verdadeiramente o possamos amar. O que chamamos de regeneração é exposto por Jeremias nestas palavras: "...Na mente lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhes escreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo" (31:33). Ezequiel usa uma figura para ilustrar regeneração que, mesmo refletindo o modo de pensar do Velho Testamento, é usada ainda hoje: "Dar-vos-ei coração novo, e porei dentro de vós espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne" (36:26; cf. 11:19). Aqui Deus, através de Ezequiel, promete aos exilados na Babilônia que no futuro os renovará a partir do interior.
O Novo Testamento também nos provê com mais ricos ensinamentos sobre a regeneração do que faz o Velho Testamento. Nos Evangelhos Sinóticos, a palavra "regeneração" não é usada no sentido de "novo nascimento". O pensamento, porém, está presente. Quando Jesus diz: "Assim, toda árvore boa produz bons frutos, porém a árvore má produz maus frutos" (Mateus 7:17). Ele quer dizer que a árvore precisa ser feita boa antes que possa produzir bons frutos. Quando afirma: "Toda planta que meu Pai não plantou, será arrancada" (15:13) significa que aquelas Plantas que o Pai celeste plantou, não serão desarraigadas. Declarações como essas claramente sugerem a necessidade de regeneração.
Nenhum autor do Novo Testamento se refere mais freqüentemente à regeneração ou novo nascimento do que o apóstolo João. Olhemos primeiro para João 1:12,13:
v. 12: "Mas a todos quanto o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus; a saber, aos que crêem no seu nome;
v.13: "os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus".
Teólogos arminianos costumar citar o versículo 12 para provar que a fé tem que preceder a regeneração: "...deu-lhes o poder de serem filhos de Deus; a saber, aos que crêem no seu nome". Mas não podemos separar o versículo 12 do 13. O segundo nos diz que ser filho de Deus não procede da decisão humana, ou descendência, mas unicamente da atividade divina. É verdade que aqueles que crêem em Cristo receberam o direito de serem filhos de Deus - mas por trás dessa fé está a obra miraculosa de Deus, pela qual eles nascem de novo. Nascem, não do homem, mas de Deus.
Talvez nenhum capítulo do Novo Testamento ensine a soberania da atividade de Deus na regeneração de forma mais clara do que o capítulo 3 do Evangelho de João. Nicodemos, o fariseu, principal dos judeus, veio a Jesus de noite. Suas declarações iniciais evidenciam respeito por Jesus como mestre, mas mostravam falta de entendimento quanto à verdadeira missão de Cristo: "Rabi, sabemos que és mestre vindo da parte de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes se Deus não estiver com ele" (3:2). A resposta de Jesus no verso 3 soa como a chave para toda a discussão: "Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer de novo [ou 'do alto'; grego gennethe anothen], não pode ver o reino de Deus". Gennethe é uma forma aoristo passivo de gennao, que quer dizer tanto "gerar" quanto "nascer". As diversas versões tomam esse verbo como sentido de "nascer"; o versículo 4 mostra que era essa exatamente a intenção do autor. Anothen significa literalmente "do alto"; pode também significar "outra vez" ou "de novo". No Evangelho de João, a palavra anothen é usada três vezes no capítulo 3 (nos versículos 3, 7 e 31); é também usada três em 19:11 e 19:23. Nas três últimas vezes inquestionavelmente significa "do alto". Concluo que em 3:3 e 7, as palavras de Jesus podem ser traduzidas por "nascidos do alto". A expressão incluiria o pensamento de que alguém precisa nascer de novo, mas indica especificamente o fato de que esse novo nascimento é um nascimento do alto.
Jesus está dizendo a Nicodemos que ele não pode sequer começar a ver o reino de Deus que Ele, Jesus, está introduzindo, nem as realidades espirituais do reino a ser que nasça do alto. A forma aoristo do verbo, gennethe, mostra que o novo nascimento é uma ocorrência singular, acontecendo de uma vez para sempre. A voz passiva do verbo nos diz que essa é uma ocorrência em que o papel do ser humano é totalmente passivo. De fato, o verbo usado, mesmo sem voz passiva, diz a mesma coisa. Não escolhemos nascer; nada temos a ver com o nosso nascimento. Somos completamente passivos em nosso nascimento natural. Da mesma forma acontece com nosso nascimento espiritual. O advérbio anothen diz que o novo nascimento é do alto: um nascimento "do céu", distinguindo do nascimento natural, que é da terra.
Sumariando, do versículo 3 aprendemos que a regeneração é absolutamente necessária se queremos ver o Reino de Deus, e que se trata de uma transformação na qual os seres humanos são completamente passivos - tão passivos quanto no nascimento natural. Aprendemos também do versículo 3 que esse novo nascimento é "do alto" - isto é, precisa ser operado por um agente sobrenatural e sobre-humano.
Depois que Nicodemos expressou sua surpresa e perguntou sobre a possibilidade de entrar no ventre materno e nascer pela segunda vez, Jesus respondeu: "Em verdade, em verdade, te digo: Quem não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus". Alguns intérpretes vêem na palavra "água" uma referência ao batismo, mas parece que aqui a palavra deve ser entendida como símbolo da purificação interna, como é freqüentemente utilizada no Velho Testamento. [1] A expressão"nascer do Espírito" revela o agente divino desse novo nascimento: o Espírito Santo. Antes Jesus disse que era um nascimento "do alto", e agora ele identifica especificamente o autor divino. Nesse novo nascimento, somos completamente dependentes da soberana atividade do Espírito de Deus.
Ao chegar ao v. 6 é preciso resistir à tentação de interpretar a palavra "carne" (sarx) no sentido Paulino usual, significando a natureza humana escravizada pelo pecado. Para João, a palavra "carne" freqüentemente significa a "fraqueza humana inseparável, inata, da existência humana", o que parece ser o caso aqui. Assim, quando Jesus diz: "o que é nascido da carne é carne, o que é nascido do Espírito, é espírito" (v. 6), ele está dizendo que quem é nascido meramente do físico continua sendo uma criatura não regenerada, nada mais, enquanto quem pe nascido do Espírito Santo é espiritual em sua essência. Passamos do nível inferior ao superior através de um novo nascimento sobrenatural. Regeneração, em outras palavras, é uma mudança radical em nossa natureza.
"Não te admires de eu te dizer: Importa-vos nascer de novo" (v. 7). Essas palavras são freqüentemente entendidas como que dizendo que precisamos fazer alguma coisa em nossa força a fim de nascer de novo. Não foi isso que o Senhor quis dizer. Ele estava falando a Nicodemos que ele e outros (importa-vos) precisavam nascer "do alto" (anothen) a fim de ver e de entrar no Seu reino.
No v. 8, Jesus demonstra a soberania e o mistério da ação do Espírito Santo na regeneração. "O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do Espírito". A ação do Espírito na regeneração das pessoas é tão soberana quanto o vento que sopra aonde quer. Mas essa ação é também profundo mistério, como são os movimentos do vento. Jesus ainda diz: "ouves a sua voz" - será que Jesus e Nicodemos sentiram soprar o vento naquele instante? Você não entende os movimentos do vento, mas pode ouvir seu som. Igualmente, você não entende o mistério do novo nascimento, mas você pode concluir de certos sinais externos, se você é nascido de novo. Quais sejam esses sinais nós aprenderemos ao estudarmos a primeira epístola de João.
Resumindo, uma vez mais, dos versos 5 a 8 aprendemos que o agente divino da regeneração é o Espírito Santo, que a nova vida recebida no novo nascimento é radicalmente diferente da vida meramente biológica, e que ainda que a regeneração seja um acontecimento misterioso, podemos saber se ela ocorreu observando os frutos.
O Ensino de Paulo
O que Paulo ensina sobre regeneração? Nos escritos de Paulo, a palavra "regeneração" (palingenesia) ocorre apenas uma vez, em Tito 3:5: "...ele nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo". Em João, a regeneração é retratada como um novo nascimento ou um nascimento do alto; aqui temos uma figura similar: paligenesia, de palin, significando "outra vez" e genesia, significando "gênesis" ou "nascimento". As palavras indicam um novo começo. A expressão "lavar regenerador" é provavelmente uma alusão ao batismo, mostrando simbolicamente sua realidade espiritual. [2] As palavras "renovador do Espírito Santo" nos diz que a regeneração envolve não só purificação dos pecados, mas também uma renovação que é gerada em nós pelo Espírito e que continua no processo de santificação.
Mesmo que seja esse o único lugar onde Paulo usa a palavra "regeneração", ele faz freqüentemente alusões à regeneração nas suas cartas. Em Efésios 2:5, Paulo afirma que, quando estávamos mortos nas nossas transgressões, Deus nos deu vida juntamente em Cristo. Em Efésios 2:10 e 2 Coríntios 5:17, Paulo usa uma nova figura para a regeneração. É um tipo tão surpreendente diferente de existência, que só pode ser comparado a uma nova criação: "Pois somos feituras dele, criados em Cristo Jesus..." e "E assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura...". Dessas declarações de Paulo, aprendemos que a regeneração é o fruto da ação purificadora ou renovadora do nosso espírito [pelo Espírito de Deus], e que ela significa que agora nos tornamos parte da maravilhosa nova criação de Deus.
Pedro também lida com a regeneração em sua primeira epístola. Ele usa a palavra anagennao, que pode significar "gerar de novo" ou "fazer nascer de novo": "...nos regenerou para uma viva esperança mediante a ressurreição de Jesus Cristo" (1 Pedro 1:3). Pedro liga a regeneração com a ressurreição de Cristo e com a nossa esperança. Deus fez com que nascêssemos de novo, ele diz, através da ressurreição de Cristo dentre os mortos. A ressurreição de Cristo é, na verdade, nossa fonte de vida espiritual; uma vez que Deus nos tornou vivos em Cristo, nossa vida é compartilhada na vida ressurreta de Cristo. Através desse maravilhoso evento fomos gerados de novo para uma viva esperança - a esperança de que um dia entraremos na posse da herança que jamais perece, estraga ou desvanece (v. 4). Pedro, então, vê a regeneração de uma perspectiva escatológica: o início de nossa vida em Cristo abre as portas à gloriosa vista de nossa herança eterna.
João faz diversas referências à regeneração na sua primeira epístola. Tais passagens reforçam que a regeneração é revelada por comportamentos específicos. Em 1 João 2:29 aprendemos que a pessoa regenerada prossegue em fazer o que é justo: "Se sabeis que ele é justo, reconhecei também que todo aquele que pratica a justiça é nascido dele". O verbo traduzido por "é nascido" está no tempo perfeito (gegennetai), indicando que a pessoa foi regenerada no passado e continua a mostrar no presente as evidências dessa regeneração no passado e continua a mostrar no presente as evidências dessa regeneração.
Aprendemos de 1 João 3:9, que aquele que foi regenerado não continua vivendo em pecado: "Todo aquele que é nascido de Deus não vive na prática do pecado; pois o que permanece nele é a divina semente; ora, esse não pode viver pecando, porque é nascido de Deus". A expressão "viver na prática do pecado", é traduzida de hamartian ou poiei; o tempo presente do verbo indica ação contínua. O significado é: "não prossegue em fazer e ter prazer no pecado, com completo abandono". "Não pode viver pecando" é tradução de dynatai hamartanein; o verbo "pecar" é outra vez usando no tempo presente. João quer dizer que a pessoa regenerada não é capaz de continuar pecando com prazer, isto é, viver em pecado. "O crente pode cair em pecado, mas não pode andar nele".
1 João 4:7 nos diz que a pessoa regenerada ama seus irmãos: "Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor procede de Deus; e todo aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus". A palavra "amor" usada aqui, "agapao", implica abnegação, o tipo de amor exemplificado por Cristo. Quem é nascido de novo, João diz, prossegue amando altruisticamente a seus irmãos.
Em 1 João 5:1, lemos que a pessoa regenerada tem fé: "Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido Deus". Em oposição às opiniões dos que dizem que a fé antecede a regeneração, essa passagem mostra que a fé é evidência externa da regeneração.
Aprendemos de 1 João 5:4 que aquele que é regenerado vence o mundo: "Porque todo que é nascido de Deus vence o mundo". "Mundo", como é freqüentemente usado por João, significa o mundo em inimizade para com Deus, como fonte de tentação e pecado. Em 1 João 2:15, João adverte seus leitores a não amar o mundo nem o que nele há. Na passagem que estamos considerando, João assegura-nos de que aquele que é nascido de novo não será vencido pelas tentações do mundo, mas sairá vitorioso.
João afirma em 1 João 5:18 que a pessoa regenerada é tão guardada por Cristo que não cairá jamais da fé: "Sabemos que todo aquele que é nascido de Deus não vive pecando (ouch hamartanei; o verbo outra vez no tempo presente) antes, aquele que nasceu de Deus o guarda, e o maligno não lhe toca". Tal como em 3:9, João diz que aquele que nasceu de novo não continua a viver em pecado. Por "aquele que nasceu de Deus", João quer dizer Cristo, que era o Filho de Deus de maneira singular. Cristo guarda a pessoa regenerada de forma que o diabo não pode fazer-lhe mal - não pode causar ferida mortal (Calvino). A pessoa que nasceu do alto, então, não cairá da graça, pois ele ou ela é guardado disso, por Cristo.
Aprendemos da primeira epístola de João que a pessoa regenerada tem sua vida marcada pelas seguintes características: é justa, não vive continuamente em pecado, ama seus irmãos, crê que Jesus é o Cristo, e obtém vitória sobre o mundo. Se alguém perguntar: Como posso saber se sou regenerado?, a resposta será pedir-lhe que procure essas evidências, pois João diz que elas são as marcas de quem nasceu de novo. [3]
Resumamos o que temos aprendido sobre o novo nascimento: regeneração é uma mudança radical da morte espiritual para a vida espiritual, operada pelo Espírito Santo - uma transformação na qual somos completamente passivos. Essa mudança envolve uma renovação interna de nossa natureza, é fruto da graça soberana de Deus, e ocorre na união com Cristo.
Baseados neste estudo exegético, temos que afirmar com força que a regeneração, como temos visto (como a implantação da nova vida espiritual) não é um ato em que o ser humano coopera com Deus, mas um ato do qual Deus é o único autor. A regeneração, portanto, é "monergística", [4] a obra de Deus unicamente, não "sinergística" [5] algo que só é realizado por Deus quando o homem está junto. Vimos que a regeneração é retratada no evangelho de João e em sua primeira epístola com a utilização de verbos na voz passiva: gennthe, gennethenai, gegennetai, gegennemenos. Notamos a figura poderosa encontrada em Efésios 2:5: "e estando nós mortos em nossos delitos e pecados, nos deu vida juntamente com Cristo...". Como poderiam pessoas que estão mortas provocar a própria vivificação? Regeneração, a Bíblia ensina, é a obra de Deus na qual os seres humanos são passivos. Desses ensinos bíblicos aprendemos a total soberania de Deus na sotereologia: nossa salvação é obra de Deus desde o início. Portanto, a Ele seja toda a glória!
[1] - Conferir Ezequiel 36:25: "Então aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados".
[2] - Observe que no Catecismo de Heidelberg, P. 73, essa expressão é interpretada como referente ao batismo.
[3] - A possibilidade que a regeneração pode permanecer inativa numa pessoa por muitos anos antes de induzir ao arrependimento e fé (regeneração dormente), ensinada, por exemplo, por Abraham Kuyper (veja E. Smilde, Een Eeuw van Strijd over Verbond em Doop [Kampen: Kok, 1946], pp. 105-6) parece ter sido abolida por essas passagens das epístolas de 1 João.
[4] - Termo formado por duas palavras gregas que significa, aqui, "trabalhar sozinho".
[5] - Termo formado por duas palavras gregas, significando "trabalhar junto", em cooperação. Oposto ao monergismo que significa "trabalhar sozinho".
Extraído do livro Salvos Pela Graça, de Anthony Hoekema - Editora CULTURA CRISTÃ, páginas 101-107.
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