A doutrina
da suficiência das Escrituras repousa no coração do que significa ser um
protestante. Protestantismo e catolicismo romano compartilham muito em comum em
termos de teologia básica, tal como o comprometimento com as doutrinas da
Trindade e encarnação. Quando se fala a respeito de assuntos de autoridade,
entretanto, há grandes divergências. Uma dessas é a respeito da Escritura: a
Escritura é suficiente como autoridade para a igreja ou não?
A suficiência
das Escrituras é, obviamente, uma doutrina que está de pé em positiva conexão
com várias outras convicções teológicas, tal como inerrância, a extensão do
cânon e a perspicuidade, ou clareza, da Escritura. Tudo isso ajuda a moldar
nosso entendimento da suficiência, mas está além do escopo desse breve artigo.
Dessa forma, focarei na doutrina como ela é entendida de forma geral por
aqueles que aceitam o consenso confessional protestante acerca desses assuntos,
como é retratado na segunda confissão de Londres, as três formas de unidade e
os padrões de Westminster
O que
significa que a Escritura é suficiente?
Precisamos,
é claro, analisar o que significa quando dizemos que a Escritura é suficiente.
Se meu carro quebra, ou estou tentando investigar quem cometeu um crime em um
enigma particularmente complexo, não encontrarei a resposta na Bíblia. Nem
encontrarei a discussão do genoma humano, ou as regras de um jogo, ou as marcas
das asas da borboleta da América do Norte. Na verdade, o escopo da suficiência
das Escrituras é simplesmente resumido na Questão 3 do Breve Catecismo de
Westminster:
3.
3. Qual é a coisa principal que as Escrituras nos
ensinam?
4.
A coisa principal que as Escrituras nos ensinam é o
que o homem deve crer acerca de Deus e o dever que Deus requer do homem.
Em outras
palavras, as Escrituras são suficientes para uma tarefa específica: elas
revelam quem Deus é, quem o homem é em relação a ele e como esse relacionamento
deve ser articulado em termos de adoração.
Mesmo com
essa definição, entretanto, precisamos ser precisos a respeito da natureza
dessa suficiência. Em algumas áreas, as Escrituras são suficientes para ensinar
princípios, mas não para prover detalhes específicos. Por exemplo, enquanto
elas claramente ensinam que a igreja deveria se reunir para adoração no Dia do
Senhor, elas não especificam precisamente tempo e local. Nem minha congregação
local, nem o tempo de nossos serviços são mencionados em lugar algum do Novo
Testamento. A suficiência das Escrituras não é prejudicada por essa carência. A
Escritura nunca teve a intenção de falar com precisão sobre tais detalhes
locais.
A última
observação talvez seja óbvia. Um ponto mais sútil sobre a suficiência das
Escrituras pode ser deduzido das epístolas pastorais de Paulo. Quando Paulo as
escreve, ele está dispondo seu modelo para a igreja pós-apostólica. É,
portanto, significante que ele não diga simplesmente a Timóteo e Tito para ter
certeza que haja cópias da Bíblia disponíveis para a igreja. Se a Escritura em si
e fora de si mesma eram suficientes para manter a verdade da fé, certamente
isso é tudo que ele precisaria ter feito. Em vez disso, ele não somente
enfatiza a importância da Escritura, mas também diz que há necessidade de
oficiais (presbíteros e diáconos) e de adesão a uma forma de palavras sãs (um
ensino credal tradicional). Então, dizer que a Escritura é suficiente para a
igreja não é dizer que há somente uma coisa necessária. Oficiais e
credos/confissões/estatutos de fé (formas que concordam com as sãs palavras)
também parecem ser parte básica da visão de Paulo para uma igreja
pós-apostólica.
Dados esses
fatores, há um sentido em que podemos dizer que os protestantes acreditam na insuficiência
das Escrituras: reconhecemos que a Escritura é insuficiente para muitos
detalhes da vida diária, tal como a manutenção de uma motocicleta e cozinhar
carne. É até mesmo insuficiente para o dia-a-dia e boa saúde da igreja:
precisamos de presbíteros, diáconos e modelos de sãs palavras. Ela é
suficiente, entretanto, para regular o conteúdo doutrinário da fé cristã e a
vida da igreja em um nível principal. Esse é o ponto de Paulo em 2Timóteo 3.16.
Em outras palavras, falar da suficiência das Escrituras é uma forma de falar
acerca da autoridade única da Escritura na vida da igreja e do crente como
autoritativa e fonte suficiente para princípios de fé e prática.
A Escritura
é suficiente para o que?
Podemos
elaborar isso. Primeiro, a Escritura é suficiente como base noética do
conhecimento de Deus. Isso significa que toda afirmação teológica tem que ser
consistente como ensino da Escritura. A declaração “Deus é Trindade” não é
achada em lugar algum da Bíblia; mas seu conteúdo conceitual está lá. Esse é o
motivo pelo qual deveria ser afirmada por todos os cristãos. Em contraste,
“Maria foi concebida sem pecado original” não é um conceito encontrado na
Escritura. Católicos romanos que afirmam a noção revelam dessa forma sua visão
que a Escritura não é a base suficiente para teologia, mas precisa ser suplementada
pelo ensino do magistério da igreja.
Segundo, a
Escritura é suficiente para a prática cristã. No nível do comportamento, a
Escritura oferece princípios que guiam crentes em suas vidas dia a dia. Isso
pode ser uma área complicada: o advento de Cristo demanda que os códigos da lei
do Antigo Testamento sejam lidos à luz da sua pessoa e obra, e esse assunto
está além do escopo imediato desse pequeno tratado. Mas o princípio da
suficiência é claro: dada a dinâmica histórico-redentiva, a Escritura provê princípios
gerais totalmente adequados e suficientes que podem ser aplicados em situações
éticas específicas. Por exemplo, a Bíblia pode não fazer referência às
células-tronco, mas contém princípios que deveriam moldar nossas atitudes para
com elas.
Terceiro, no
nível da igreja e instituição, a Escritura é novamente suficiente para os
princípios de organização e adoração pública. Em termos de organização, tenho
já notado o fato de que Paulo vê aqueles que possuem cargos e confissões/credos
como vitais para a saúde corrente da igreja. Quanto aos que possuem cargos, a
Escritura também descreve o tipo de homens que devem ser apontados. Quanto aos
credos, meu primeiro ponto acima – que a Escritura é suficiente como a norma do
conteúdo da declaração doutrinária – é claramente relevante.
Quarto, em
termos de adoração pública, a Escritura é suficiente para estabelecer seus
elementos: cantar louvor, oração, leitura e pregação da Palavra de Deus, dízimo
e ofertas para a obra da igreja, batismo e a Ceia do Senhor. Com respeito aos
credos, a Escritura também é suficiente para regular a agenda e o conteúdo dos
sermões, músicas de louvor, orações, com o que o dinheiro será gasto, quem é
batizado e quem recebe a Ceia do Senhor.
Em resumo,
alguém pode dizer muitas coisas acerca de como uma igreja em particular entende
a suficiência das Escrituras por olhar para sua forma de governo, o conteúdo e
ênfase da sua adoração corporativa e a forma como os presbíteros pastoreiam a
congregação.
Carl R. Trueman é teólogo cristão, historiador da igreja e
professor de Teologia Histórica e História da Igreja, ocupando a cadeira dessa
matéria no Westminster Theological Seminary. Trueman estudou na St Catharine's
College, Cambridge, e na University of Aberdeen. Antes de ensinar no seminário
de Westminster, Trueman foi professor de Teologia na Universidade de Nottingham
de 1993 a 1998, e professor de História da Igreja na Universidade de Aberdeen
entre 1998 e 2001. Foi editor de Themelios de 1998 a 2007, e é membro
conselheiro da Alliance of Confessing Evangelicals.
Fonte: Voltemos ao Evangelho
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