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segunda-feira, 30 de abril de 2018

Por uma espiritualidade cristocêntrica nos dias atuais

“Pode-se, pois, reconhecer que há um Deus sem se saber o que é. […] se pode conhecer muito bem a existência de uma coisa sem lhe conhecer a natureza.” (B. Pascal, Pensamentos, III,233).

Discernir a piedade cristã da espiritualidade mística-pluralista sem que se tenha uma cosmovisão teorreferente nos fundamentos prementes das doutrinas de Cristo é praticamente impossível, uma vez que impossibilita a hiatização do Criador-criatura, o eu-Tu, e a justaposição do homem no universo criado por Deus.

Prima facie, espiritualidade e piedade são inseparáveis. Apontam a essência do homem. João Calvino ligava-as ao seu supremo propósito: soli Deo gloria. Esta, por sua vez, decorreria consequentemente à antropologia: imago Dei– incapaz de hiatizar o corpo da alma, o secular do sagrado, mas cuidadosa quanto a distinção entre Deus e o homem, o Espírito de Deus e o mundo por ele criado.

Paradoxalmente, a doutrina da encarnação do Filho de Deus traz o homem a viver apropriadamente esta realidade: o mundo de Deus e o mundo dos homens como um mesmo mundo, onde Deus é condescendente por participar vida a homens cujo estatuto do ser era menos do que nada. E, não é à toa que Soren Kierkegaard (teólogo dinamarquês) propôs o ‘salto da fé’; Nietzsche preferiu a ideia do ‘além-homem’. Todavia, para o cristão, tal paradoxo constitui-se não na pedra de escândalo, mas na pedra angular, o ponto de equilíbrio entre a sua existência e sua relação com as “coisas” que estão ao seu exterior.

Logo, fica evidente que no Cristianismo a própria noção de espiritualidade e natureza não deve ser tratada como separação ou união Deus-homem. As confissões de fé e credos, sustentados ainda hoje por muitas igrejas cristãs, baseiam ambas as realidades: a divina e a humana- realizadas na Pessoa de Jesus Cristo. Trata-se de dimensões teológicas da Reforma, cujas raízes são oriundas da doutrina da união mística com Cristo, e a sua aplicação nada mais é que a justificação e santificação.

Não é difícil entender o porquê de urgir uma espiritualidade que seja verdadeiramente cristocêntrica hoje. Cristo torna-se o eixo sobre o qual toda cosmovisão faz sentido ao homem. É deste modo que é impossível relativizar toda ideia de existência, toda definição de coisas, bem como, materializar o cosmo.

Contudo, o mundo atual segue oposto a fundamentação de Cristo como ponto convergente a toda espiritualidade. Isto soa irônico, pois, a própria espiritualidade centrada em Cristo é pessimista quanto a sua fácil aceitação no mundo. A espiritualidade cristã centraliza-se na tríade diretória: criação-queda-redenção, e espera do homem uma certa relutância natural quanto a esta teleologia, pois é um dos sinais confirmatórios de sua verdade. Herman Dooyeweerd, filósofo reformacional, acredita que o homem se mantém sobre a estrutura imago Dei; todavia, caído, o homem segue direção oposta à estrutura/forma para a qual fora criado. Explica que o pecado original não poderia destruir o centro religioso da existência humana e o seu impulso religioso inato de buscar sua origem absoluta. Ele poderia apenas conduzir esse impulso central para uma direção falsa, apóstata, desviando-se em direção ao mundo temporal com sua rica diversidade de aspectos, os quais, entretanto, têm apenas um sentido relativo.[1]

Ora, isto é significativo, pois dirige-nos os olhos ao discernimento da espiritualidade atual. Nada soa tão verdadeiro quanto o fato de que, se na modernidade o homem era considerado o ‘homo sapiens’ (em detrimento à centralidade da Razão) hoje, ele se mostra como verdadeiramente sempre o foi: ‘homo religionis’ (em detrimento à perda tanto da Razão ou do eu como sujeitos, atualmente, o subjetivismo não sustenta, per si, a unidade de interpretação de toda a realidade percebida imediatamente pelo ‘eu’; aliás, que eu?). Os “substitutos” de Deus na história dos homens, quer epistêmicos ou filosóficos, caíram à uma, e em seus lugares ergue uma espiritualidade sombra do vazio, desespero, descrença e desilusão. Mas este movimento histórico- teológico é paradoxal. A crescente espiritualidade é protesto contra Deus da mesma forma em que um ateu diga que “Deus está morto”. Porém, todo esse esforço não nos remete apenas à rebeldia idolátrica. Misticismo e niilismo nos remetem, pelos seus esforços contrários à realidade daquilo que negam. Sim, pois, se um ateu nega a realidade da existência do Deus Pessoal, o místico também o nega, caso tomemos as Escrituras como a Palavra de Deus. O homem rebelde, que “fugiu de casa, do benfazejo amor do Pai.” “Seu Pai ainda o alimenta. Ainda assim, despreza as riquezas de sua bondade” (C. Van Til, O Pastor Reformado e o Pensamento Moderno, Cultura Cristã, p.47).

As Escrituras sempre apontaram Deus como o fundamento essencial do homem. Mas disto decorre também o perigo: idolatria. Calvino enceta o perigo quando considera que o pecado tornou o homem em fábrica de fantasias e ídolos, enquanto Dooyeweerd o sintetiza como coração incrivelmente idólatra. Ambos corroboram a verdade de que, para o Cristianismo, o homem é dimensionado pela sua relação com Deus; sobretudo, mediante Jesus Cristo. Em Jesus Cristo, o sensu divinitatis é corretamente voltado para Deus- não reduz nem aumenta a dignidade do homem. Cristo centraliza o homem entre o Criador e a criatura.

Assim, a espiritualidade, como inerente a todos os homens, faz com que até mesmo o ateu a possua, e mesmo quando “diz o néscio em seu coração: não há Deus”, ao dizê-lo só o faz depois de tê-lo percebido no coração. Portanto, torna-se uma negação vazia frente à realidade da existência de Deus, conclui Anselmo de Aosta no Proslógion. A realidade vivenciada pelo homem é derivativa; ou seja, é experienciada pelo indivíduo segundo Deus. O homem tem acesso imediato a ela, e só depois é que esta realidade derivada de Deus é mediata pela sua consciência, e então pode ser objetável. Todavia, a supressão desta realidade nada mais é do que um ato apóstata e idolátrico.

Fica óbvio, então, que o sensu divinitatis ou a imagem de Deus no homem, não faz de qualquer interpretação da realidade um culto ou da religião uma verdadeira espiritualidade. Sem que se assuma a existência da convergência de todas as coisas à Pessoa de Jesus Cristo, toda espiritualidade estará voltada para a divinização do homem e a humanização de Deus- uma inversão de realidades (terrível idolatria!). E, por não conseguir satisfazer-se com a inversão ontológica, o homem media para sua religião objetos limitados pelo seu próprio estado como se fossem naturais no culto a Deus.

Talvez, a ‘espiritualidade cristocêntrica’, hoje, seja desafiada a caminhar com a fé sem que a entenda como um ‘salto no escuro’, sem que a torne em um poder místico que transforma homem pecadores em ‘além-homem’. Que desafie o homem a aceitar a sua miséria, e que ao ouvir o clamor de sua alma por Deus, consiga discernir a sua posição entre a queda e a redenção, tal qual Pascal pontuou.[2] E isto somente uma espiritualidade centrada em Cristo o pode dar.

Urge a necessidade de se voltar aos fundamentos bíblicos, onde a simplicidade da mensagem não significa descuido com o intelecto e com o coração, Mas céu e terra são sagrados, o pecado é uma realidade e o perdão de Deus uma experiência verdadeira em Cristo Jesus.

A espiritualidade cristocêntrica é, per si, o próprio desafio ao homem que se volta à religião em que Cristo é tudo, menos Aquele que se faz sentido do próprio eu do sujeito.

NOTAS: 


[1] DOOYEWEERD, H. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento, São Paulo: Hagnos, 2010, p.260.

[2] PASCAL, B. Pensamentos, São Paulo: Difusão europeia do livro, 1957, p.62: “Afinal que é o homem dentro da natureza? Nada em relação ao infinito; tudo em relação ao nada; um ponto intermediário entre tudo e nada. Infinitamente incapaz de compreender os extremos, tanto o fim das coisas como o seu princípio permanecem ocultos num segredo impenetrável, e é-lhe igualmente impossível ver o nada de onde saiu e o infinito que o envolve. Que poderá fazer, portanto, senão perceber alguma aparência das coisas num eterno desespero por não poder conhecer nem o princípio nem seu fim? Todas as coisas saíram do nada e foram levadas para o infinito; quem seguirá estes caminhos assombrosos? O autor destas maravilhas conhece-os; e ninguém mais.”

Fonte: www.napec.org

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