Gostos pessoais nunca
deveriam ser colocados em pé de igualdade ao Evangelho. Quando a
subjetividade dos gostos pessoais se infiltra no contexto da igreja, a
possibilidade de problemas é tão certa como o fulgor do sol do meio-dia.
O Evangelho deveria ser o norteador de absolutamente tudo que acontece
na igreja, justamente por que a igreja deveria estar sendo conduzida sob
a direção do Evangelho. O grande problema que pode ser observado e que
se torna um desafio para nossos dias é que os falsos ensinos e falsos
mestres estão se multiplicando como fogo em palha, justamente pelo
clamor e anseio de gostos pessoais.
Nestes dias tão
estranhos, o que deixa grande parte dos crentes irritados já não são os
falsos mestres e seus ensinos. O que os aborrece são justamente aqueles
que denunciam a perversão do Evangelho e confrontam a operação dos
“hereges de estimação”. Percebe-se uma clara inversão de valores e nunca
será tarde para combater e bradar contra aquilo que foge ao padrão
bíblico, já que não são poucos os tragados pelos falsos ensinos. Disse
Spurgeon:
Falsos mestres que hábil
e laboriosamente caçam preciosas vidas, devorando homens com suas
falsidades, são perigosos e detestáveis como lobos da noite. Corremos
muito perigo quando eles se vestem com pele de ovelha. Abençoado é
aquele que está livre deles, pois milhares se tornam presas de lobos
atrozes que transitam nos arredores da igreja. [1]
Eles estão espalhados,
infiltrados por todos os lados. Não se trata de mera especulação ou
mesmo de síndrome de conspiração. Basta observar o conteúdo das
pregações, congressos, retiros, livros e músicas! Ah as músicas, grande
celeiro de ensinos duvidosos, fábrica de ídolos, pervertedores do
Evangelho. Livros e mais livros nas fileiras de Best Sellers que ensinam
de tudo sob o rótulo de cristão, porém com pouco ou nada de Evangelho.
Preletores que movimentam massas e cifras para pregações vazias e com
status de show de comédia stand-up. Já que estamos em busca de um
avivamento genuíno em nossos dias, que seja algo puro e nutrido pela
Palavra de Deus.
Um problema antigo
O que acontece em nossos
dias vem se repetindo num desgastante movimento cíclico de geração em
geração desde os primórdios da igreja. Para meditação e comparação com
nosso contexto atual, o ponto de partida está na breve – porém profunda –
Epístola de Judas, irmão de Tiago (Jd 1), irmão do Senhor Jesus (Mt
13.55; Mc 6.3). Este não deve ser confundido com Judas Iscariotes, o
traidor. Ao lermos os ensinos prestados pelas Escrituras no texto de
Judas, versículos 10 ao 13, podemos perceber que as preocupações da
igreja naquele momento estão se repetindo em nossos dias. Afinal:
Judas descreve sua obra
em termos de exortação e de encorajamento (Jd 3). Obviamente, ele queria
fortalecer as igrejas contra falsos mestres que estavam pervertendo o
evangelho. Desse modo, ele repetidamente conclamou os crentes a ficarem
firmes ou manterem a sua pureza e o evangelho (vv. 3, 20, 21, 24). [2]
Crentes contemporâneos
estão cada vez mais lendo as Escrituras de modo alegórico. Pregadores
cada vez mais trazendo mensagens relativizadas e carentes de exposição
das Escrituras. Cantores compondo e contando letras egocêntricas,
focadas no homem e distantes de Deus e sua Palavra. Ainda que às vezes
até falem no nome de Deus, tratam com objetivos cada vez mais distantes
do Evangelho. João Calvino assim comenta sobre tais homens, dentro do
contexto da Epístola de Judas, porém nada diferente dos dias da Reforma
Protestante e de nossos dias:
Como os homens
destituídos de princípios, sob o título de cristãos, se insinuavam
sorrateiramente, cujo principal objetivo era levar os instáveis e fracos
a um profundo descaso de Deus, Judas mostra, antes de tudo, que os
fiéis não devem deixar-se mover por agentes deste gênero, pelos quais a
igreja sempre se viu assaltada; e os exorta ainda a se precaverem,
cuidadosamente, de tais pestes. […] Ora, se consideramos o que satanás
tem tentado em nossa época, desde quando o evangelho começou a ser
vivificado, e quais as artes ele ainda emprega ativamente com o fim de
subverter a fé e o temor de Deus, e que utilidade teve esta advertência
nos dias e Judas, ela se faz ainda mais que necessária em nossos dias.
[3]
Assim como a advertência
de Calvino há quase quinhentos anos, comentando sobre a Epístola de
Judas, que a igreja já era perturbada por “pestes”, nossos dias mostram
pela aplicação da própria Escritura exposta que nossa vigilância precisa
ser constante. Ainda que muito prejudiciais para a saúde da igreja,
existem aqueles que cegamente lançam-se aos braços dos hereges,
cultivando-os como seres de estimação. Infelizmente este sistema de
crença demonstra que se trata de uma relação quase comercial, de oferta e
demanda: onde existe um herege levantando um falso ensino, existirão
corações ávidos para aclamá-lo.
Nas Escrituras
Para amplitude do que
está sendo aqui tratado, além da leitura completa da Epístola de Judas,
recomenda-se a leitura da 2ª carta de Pedro, pela proximidade e
complemento dos assuntos abordados.
Vejamos pela Bíblia:
“Tais indivíduos,
porém, zombam de coisas que não entendem. Como criaturas irracionais,
agem segundo seus instintos e, desse modo, provocam a própria
destruição”. Judas 10
Historicamente os
oponentes da igreja que foram combatidos na Epístola de Judas são
identificados como pertencentes à seita gnóstica primitiva[4]. Esta
seita primitiva alegava que somente os iniciados em seus ensinos eram
capazes de chegar ao verdadeiro conhecimento, ou seja, sua religião
mística era detentora do caminho perfeito. Zombavam de coisas que não
entendiam, pois seguiam seus mestres hereges, como bem descrito por
Paulo em 1Tm 4.1. Acharam mestres segundo suas vontades (2Tm 4.1-5) e
com isso traziam perversão ao Evangelho de Cristo e perturbação nas
reuniões de comunhão dos crentes.
Em nossos dias não são
poucos que se lançam a supostas visões e revelações que não encontram
qualquer paralelo e respaldo nas Sagradas Escrituras – e pior – vão à
contramão daquilo que a Bíblia ensina. Tais pessoas guiam cegos na sua
cegueira rumo ao abismo e a destruição. Infelizmente seus seguidores
mergulharam em nível de cegueira tão profunda que não aceitam sequer
argumentos contrários. Apoiados na tolice e repetição quase como um
papagaio de “não julgueis para não ser julgados”, filtram moscas e
engolem camelos. Cultivam hereges de estimação.
“Ai deles! Porque
entraram pelo caminho de Caim, e foram levados pelo engano do prêmio de
Balaão, e pereceram na contradição de Coré.” Judas 11
Aqui está o motivo de
tudo. O enganoso coração dos falsos mestres que são postos pela
Escritura em pé de igualdade com o que há de pior na Bíblia: Caim,
Balaão e Coré. Da mesma forma que Jesus aplica os “ais” de Mateus 23,
Judas aplica “ai” para estes que são comparados a Caim, Balaão e Coré.
Caim foi o primeiro
assassino registrado nas Escrituras, homem perverso, injusto e vazio de
amor, egoísta e egocêntrico. Leia e compare os textos de Gn 4.4-15 e 1Jo
3.11-12. Percebe-se também que Caim é a tentativa frustrada de tentar
agradar ou mesmo barganhar com Deus pelos esforços meramente humanos.
Pior que toda sua prática reprovável é sua atitude posterior,
demonstrando o cinismo e materialismo desafiador de Caim quanto à
soberania do Deus vivo. Para benefício próprio, aqueles que agem como
Caim desprezam o próximo, são vazios de compaixão, fé e amor, além de
passar a ser um claro agente opositor da ação da graça de Deus.
Balaão por sua vez
mostra a personalidade do avarento, mentiroso e de coração cheio de
cobiça e engano. Para aprofundar o entendimento sobre Balaão, leia
Números nos capítulos 22 ao 24. Já em Nm 25 traz a narrativa sobre o
erro de Balaão por ter levado o povo de Israel ao caminho da imoralidade
e idolatria, ao incentivar Balaque, rei de Moabe, com a introdução de
“donzelas” no meio do povo de Deus (veja Nm 31.16). Agiu desta forma,
pois tentara amaldiçoar o povo de Deus sendo incapacitado a proferir
maldições. Nos dias de hoje os que se assemelham a Balaão alegam que o
pecado é algo não tão sério assim e que não existe conseqüência sobre
nossos erros, afinal, movidos pela avareza e cobiça de um coração de
Balaão, facilmente ocultam o que está errado pelos honorários e lucros
financeiros que facilmente desvirtuam a exortação bíblica. Tais homens
seriam capazes de vender a própria mãe pela avidez e presunção de seus
corações, imagine o que são capazes de fazer com um povo ignorante a
respeito da Bíblia? William MacDonald comenta assim sobre Balaão:
Como Balaão, os falsos
mestres de hoje são agradáveis e convincentes. Conseguem dizer duas
coisas ao mesmo tempo. Em sua ganância, omitem a verdade a fim de
aumentar a própria renda e procuram transformar a casa de Deus em casa
de negócio. A cristandade de hoje se encontra contaminada pelo pecado da
simonia. Se a busca por lucro pudesse, de algum modo, ser removida,
muitos trabalhos supostamente cristãos deixariam de existir.[5]
Coré por sua vez
apresenta a rebeldia e insubordinação aos valores absolutos. Fala também
sobre um princípio de autoridade que fere os ouvidos de muitos – tanto
dentro como fora da igreja – em dias de tanto relativismo ético e moral.
Filhos desobedientes, empregados rebeldes, membros de igreja facciosos,
os exemplos seriam intermináveis. Nm 16 fala sobre a desobediência,
cegueira, rebeldia e insubordinação de Coré – em parceria com Datã e
Abirão – contra Moisés e Arão. Coré se julgava como um tipo que nos dias
de hoje são vistos como um canal, um guru, quase um gnóstico dos dias
de Judas. Aqueles que alegam possuir revelações especiais e direções
exclusivas – supostamente vindas de Deus – mas que passam longe da
revelação bíblica, assim como o norte está do sul. O Novo Testamento
fala sobre figuras de postura semelhante à de Coré, como pode ser
complementado com a leitura dos textos de Tt 1.9-11; 1Tm 1.19-20 e 3Jo
9,10 que ajudarão a entender melhor as conseqüências desta rebeldia
espiritual.
A seqüência do texto de
Judas exemplifica como estes três tipos desvirtuam a igreja de seu foco e
propósito, sugando sua saúde e tirando propósito da própria comunidade
em benefício próprio.
“Estes são manchas em
vossas festas de amor, banqueteando-se convosco, e apascentando-se a si
mesmos sem temor; são nuvens sem água, levadas pelos ventos de uma para
outra parte; são como árvores murchas, infrutíferas, duas vezes mortas,
desarraigadas; Ondas impetuosas do mar, que escumam as suas mesmas
abominações; estrelas errantes, para os quais está eternamente reservada
a negrura das trevas.” Judas 12 – 13
As Festas de Comunhão ou
as Ágapes eram momentos de comunhão entre os irmãos da igreja
primitiva, muitas vezes apontando até mesmo para a celebração da Ceia do
Senhor. Uma vez que estas reuniões ocorriam nas casas, os falsos
mestres se infiltraram na comunidade pervertendo a comunhão em
licenciosidade, com posturas de gula, desordem, imoralidades e até mesmo
orgias. Calvino, ao comentar sobre estes indivíduos, lamenta que este
“espírito de tolerância” tenha gerado conivência com o erro ao ponto de
ser danoso para igreja:
Eu, em nossos dias,
desejaria que houvesse mais critério em alguns bons homens, os quais,
procurando ser extremamente bondosos para com homens perversos, causam
grande dano em toda a igreja. [6]
Judas emprega uma série
de exemplos da natureza e do cotidiano para tratar do cuidado que a
igreja deve ter quanto aos falsos mestres, que assim como dito
anteriormente, estavam infiltrados na igreja primitiva e continuam
infiltrados na igreja contemporânea. Quando o texto emprega “manchas em
vossas festas”, fala sobre rochas e recifes submersos (algumas tradução
bíblicas empregam exatamente o termo rochas e recifes) que são
verdadeiras armadilhas para embarcações no mar podendo levá-las ao
naufrágio. Já para os cristãos estes certamente podem naufragar em sua
fé diante destes riscos e pela ausência do filtro bíblico em suas vidas.
Estes pervertedores
ainda são chamados de “pastores de si mesmos”, numa clara referência a
rebeldia de Coré anteriormente relatada. São mestres do egocentrismo,
pois apesar de querer conduzir a outros, não são capazes de se deixar
ser pastoreados, mostrando claramente que não são ovelhas, mas bodes ou
lobos. Não se deixam pastorear, mas levam e afastam as pessoas para os
caminhos tortos. São como nuvens sem água, pois apesar do alarido e da
promessa de chuva, por onde passam deixam a terra sedenta e seca, apenas
tapando o sol temporariamente para que sejam levadas em seguida pelos
ventos.
O texto fala ainda sobre
árvores sem frutas sem folhas, murchas ou secas, mortos no pecado como
conseqüência do afastamento de Deus e de sua palavra. Por dado momento
engana a muitos com aparência de piedade e religiosidade fervorosa, até
pareceu ter vida, mas na verdade era morta e sem raiz – duplamente
mortos.
Por fim o contexto fala
ainda sobre os falsos mestres como ondas do mar, que apesar de muito
barulho e alarido apenas efetuam o infindável movimento de ir e vir,
vomitando suas sujeiras e imundícies, bastando que baixe a maré para que
sua impiedade, ganância e avareza fiquem à mostra na areia da praia. Ou
ainda os comparando a estrelas cadentes que por um instante brilham no
céu e trazem uma passageira beleza, que rapidamente torna-se fora de
curso, se perdendo ao apagar na escuridão das trevas, para desgosto dos
seguidores.
Conclusões
Nos versículos 20 a 25
da Epístola de Judas, encontramos palavras finais para todo o contexto
da carta. Mais uma vez ele apela para que haja sobriedade por parte dos
seus leitores e destinatários, bem como hoje para toda a igreja, quanto a
postura ética e doutrinária. Além disso, conclama aos cristãos para que
sejam edificados na fé, estejam revestidos pelo poder do Espírito Santo
e em estado de firmeza e alerta. A Epístola termina com palavras de
doxologia (oração de louvor e glorificação) para exaltação do Senhor por
sua majestade e glória bem como pelo seu poder de preservação de nossa
fé.
Que possamos nos
inspirar ainda mais para nossa vida cristã através das palavras desta
curta e poderosa carta. Firmes e em prontidão para a defesa do Evangelho
e alertando aqueles que insistem em manter estima pelos que pervertem a
boa fé alheia.
Por João Rodrigo Weronka
Notas
[1] SPURGEON, Charles H. “Dia a dia com Spurgeon”. Curitiba: Pão Diário, 2015. p.519
[2] COMFORT, Philip W. e ELWELL, Walter A. org. “Dicionário Bíblico Tyndale”. Santo André: Geográfica, 2015. p.1023
[3] CALVINO, João. “Epístolas Gerais”. São José dos Campos: Fiel, 2015. p.497
[4] WEBB, Robert in REID, Daniel G. ed. “Dicionário teológico do Novo Testamento”. São Paulo: Vida Nova, 2012. p. 780
[5] MACDONALD, William. “Comentário popular do NT”. São Paulo: Mundo Cristão, 2008. p.986
[6] CALVINO, João. Op. cit. p.513
Fonte: http://ministeriobbereia.blogspot.com
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