(Não me pergunte o que aqueles bebês fazem ali embaixo)
A crença na assunção
de Maria é um dogma assumido pela Igreja Católica desde novembro de 1950,
quando o papa Pio XII decidiu usar sua infalibilidade para decretar que «a
imaculada e sempre virgem Maria foi assunta em corpo e alma à glória celestial»,
em sua constituição apostólica Munificentissimus
Deus. Ou seja, é um dogma mais recente que o fatídico “Maracanaço”, quando
o Brasil perdeu a Copa para o Uruguai em julho do mesmo ano. A razão pela qual
os papas demoraram tanto para decretar esse dogma (mesmo sendo infalíveis e não
terem como errar) é porque sabiam que ele é fraquíssimo e insustentável, seja
em termos bíblicos ou mais ainda em termos históricos.
Embora a maioria dos
teólogos católicos atualmente reconheça que essa crença não possui amparo bíblico,
no documento do papa Pio XII ele cita apenas um texto, o de Gênesis 3:15, que
supostamente diz que a mulher esmagaria a cabeça da serpente. O problema é que
no original hebraico isso é uma alusão ao próprio Cristo, não à “mulher”, que
também não é Maria (quem quiser ler sobre isso, confira este
artigo do meu blog antigo). E mesmo se estivesse
dizendo que Maria esmaga a cabeça da serpente, o que isso nos fala sobre uma
assunção de corpo e alma? Nada.
Talvez por isso, os
apologistas católicos modernos prefiram recorrer a um outro texto, o de
Apocalipse 12. Mais uma vez, dois problemas aparecem: o primeiro é que todas as
evidências textuais apontam claramente que a “mulher” neste contexto
apocalíptico simbólico é uma figura de Israel, não de Maria (sobre isso,
escrevi aqui).
E o segundo é que, novamente, não há nada em Apocalipse 12 que sugira que a
“mulher” foi arrebatada ao céu. Pelo contrário: a única parte que fala de uma
assunção é a que diz que “seu filho foi arrebatado
para junto de Deus e de seu trono” (Ap 12:5), não ela mesma. Portanto,
para o lixo mais este argumento.
Uma vez que a Bíblia
silencia completamente a respeito de uma suposta assunção de Maria, chegamos ao
ponto crucial: a patrística. Se Maria tivesse sido mesmo assunta aos céus e
isso fosse de conhecimento dos apóstolos, isso logo ficaria claro a todos os
cristãos, e os Pais da Igreja não hesitariam em escrever sobre isso, sobretudo
em contextos que fazem menção a Maria e a seu destino final. No entanto, mais
uma vez nos deparamos com um silêncio sepulcral. Até mesmo os historiadores
católicos mais renomados reconhecem isso, como o conceituado erudito e padre católico
Raymond Brown (1928-1998).
Para quem não sabe,
Brown foi nomeado pelo papa Paulo VI à Pontifícia Comissão Bíblica Romana, e
com a aprovação da Igreja serviu durante muitos anos na Comissão de Fé e
Constituição do Conselho Mundial. A revista Time
uma vez o descreveu como «provavelmente o melhor estudioso católico da
Escritura nos EUA», sendo ele a única pessoa a ter servido como presidente de
todas estas três sociedades distintas: Associação Bíblica Católica, Sociedade
de Literatura Bíblica e a Sociedade de Estudos do Novo Testamento. Sua
autoridade era tamanha que seus livros costumavam vir com o Nihil obstat e o Imprimatur da Igreja, o que significa que é suposto ser livre de
erro moral e doutrinário. Em relação à assunção de Maria, assim ele escreve:
“Além
disso, a noção da assunção de Maria ao céu não
deixou qualquer vestígio na literatura do terceiro e muito menos do segundo
século. M. Jugie, a principal autoridade sobre esta questão, concluiu em
seu monumental estudo: «A tradição patrística anterior ao Concílio de Nicéia não fornece nenhuma testemunha sobre a
Assunção»" (BROWN, Raymond. Maria no Novo Testamento. Mahwah: Paulist Press, 1978, p. 266)
Devemos perguntar: que
dogma é esse que passa completamente despercebido por todos os Pais da Igreja
durante pelo menos três séculos, nas palavras das maiores autoridades católicas
sobre o tema? É preciso ser inacreditavelmente ingênuo (ou algo pior) para
acreditar que todos os cristãos acreditavam nessa doutrina enquanto todos eles
se silenciavam a respeito. Mas como tudo o que é ruim pode piorar, temos um
testemunho ainda mais contundente do que o silêncio unânime dos Pais da Igreja.
Trata-se de Epifânio de Salamina (310-403), que em finais do século IV escreveu
um tratado interessantíssimo, intitulado "Os Últimos Dias da Virgem
Maria" (que você pode ler aqui).
Um Pai da Igreja
escrevendo um tratado especificamente sobre
os últimos dias de Maria! Esta era a ocasião mais que perfeita para registrar
aquilo que todo e qualquer católico de respeito não perderia a oportunidade de
dizer: que Maria foi assunta aos céus de corpo e alma. Mas na parte final do
livro, ele simplesmente diz que “se Maria morreu ou
não, nós não sabemos”,
porque "a Sagrada Escritura, transcendendo
aqui a capacidade da mente humana, deixa
a coisa na incerteza". E termina o livro, sem assunção
nem nada. Ou seja, um Pai da Igreja do século IV não sabia nada a respeito do
fim que Maria teve, nem disse nada sobre uma suposta assunção, mas em pleno ano
de 1950 o papa Pio XII tinha certeza
desse dogma, e ainda quis nos convencer de que foi um ensino passado adiante de
boca em boca até chegar ao século XX! Seria cômico, se não fosse trágico.
Está claro que a única
base que Epifânio tinha sobre Maria era a Escritura (nada de tradição oral),
então ele não podia cravar nada. Se existisse uma tradição oral com o mesmo
peso da Bíblia confirmando que Maria foi assunta aos céus, ele teria no mínimo
aludido a essa tradição, mas claramente não é o que faz. Se fosse conhecida dos
cristãos de sua época a assunção de Maria, ele não perderia a oportunidade de
mencioná-la em uma obra dessa natureza, mas não chega nem perto disso. Os primeiros
textos falando de assunção de Maria são apócrifos e bem tardios, de muito tempo
após Epifânio, um tipo de evidência que nenhum estudioso respeitável levaria a
sério (mas que foi o suficiente para convencer o papa Pio XII, que obrigou toda
a Igreja a crer no mesmo).
Durante a Idade Média,
muitos documentos foram falsificados e falsamente atribuídos a Pais da Igreja
como Agostinho e Jerônimo (como você pode ler aqui),
o que ajudou a tornar essa lenda mais popular (somada à tendência de exaltar
cada vez mais a figura de Maria, uma característica peculiar da Igreja medieval).
É curioso notar que o próprio Agostinho, que muitas vezes enfatizou a mãe de
Jesus, passou longe de aludir a qualquer ensino do tipo. Em seus escritos, tudo
o que temos é uma fala de Fausto (um maniqueísta) dizendo a Agostinho:
“Se
Elias, ao contrário da natureza, vive para sempre, por que não permitir que
Jesus, sem maior contrariedade à natureza, poderia permanecer na morte por três
dias? Além disso, não apenas Elias, mas
também Moisés e Enoque, vocês acreditam ser imortais e terem sido levados com
seus corpos para o céu. Assim, se é um bom argumento que Jesus era um homem
porque Ele morreu, é um argumento igualmente bom que Elias não era um homem
porque ele não morreu. Mas, como é falso que Elias não era um homem, apesar de
sua suposta imortalidade, também é falso que Jesus era um homem, embora se
considere que ele tenha morrido” (AGOSTINHO. Resposta a Fausto, o maniqueísta. Livro
26, c. 1)
O debate era sobre a
natureza de Jesus. Agostinho dizia que Jesus era um homem e usava como
argumento o fato de Jesus ter morrido, então Fausto (que negava a humanidade de
Cristo) reverte esse argumento contra Agostinho, citando a crença cristã na
assunção de Elias, Moisés e Enoque (apesar do próprio Fausto discordar disso),
como se isso provasse que eles não eram humanos pela lógica de Agostinho.
Observe que embora a discussão central fosse a humanidade de Cristo, temos aqui
uma importante informação histórica sobre a crença dos cristãos daquela época,
que acreditavam ser imortais e terem sido levados com seus corpos ao céu apenas
três pessoas: Elias, Moisés e Enoque (a respeito de Moisés, confira este
artigo).
Se os cristãos cressem
que Maria também foi assunta ao céu corporalmente, sem dúvida ele a mencionaria
também, o que reforçaria ainda mais o seu argumento contra Agostinho. Afinal,
trata-se de ninguém menos que a mãe de Jesus, não de uma pessoa qualquer. No
entanto, nada a seu respeito é dito. Será que Fausto era profundamente ignorante
a respeito do que os cristãos criam, a ponto de não saber nada sobre a assunção
de Maria? Se este fosse o caso, como ele conseguiu saber dos outros três? No
mínimo, os cristãos da época escondiam muito bem a crença na assunção de Maria,
para que nem um descrente ficasse sabendo dela (embora soubesse das outras).
Neste caso, o próprio Agostinho o corrigiria, e lhe mostraria que ele havia se
esquecido de Maria, que não poderia ficar de fora. No entanto, Agostinho não o
corrige em momento algum, ou seja, trata como se Fausto tivesse dito uma
verdade (no que compete a essa crença cristã).
O silêncio bíblico e
patrístico, o testemunho de Epifânio e os diálogos de Agostinho se somam a
milhares de outras evidências históricas que tornam extremamente improvável a
crença numa assunção de Maria – basicamente a mesma improbabilidade de você
ganhar na loteria dez vezes seguidas. Não vou passar todas essas evidências
aqui para não tornar o artigo excessivamente longo, mas você pode consultar os
artigos recomendados ao final deste. Em resumo, após séculos de silêncio
absoluto de todos os escritores bíblicos e patrísticos, foi preciso que um livro apócrifo de um pseudo-Dionísio (que
por um descuido foi aceito como autêntico no século VII) fizesse alusão a uma
assunção de Maria pela primeira vez – depois que descobriram a falsificação, o
estrago já estava feito.
E não pense que essa
ausência completa de evidências sérias seja uma “acusação protestante”. A
própria Enciclopédia Católica, como
você pode conferir aqui,
reconhece isso abertamente quando diz:
“A
crença na assunção corpórea de Maria baseia-se no tratado apócrifo De Obitu S.
Dominae, com o nome de São João, que pertence, no entanto, ao quarto ou
quinto século. Ele também é encontrado no livro De Transitu Virginis, falsamente
atribuído a São Melitão de Sardes, e em uma carta falsa atribuída a São Dionísio, o Areopagita. Se consultarmos
escritos genuínos no Oriente, isso é mencionado nos sermões de Santo André de
Creta (m. 740), São João Damasceno (m. 749), São Modesto de Jerusalém (c. 634)
e outros. No Ocidente, São Gregório de Tours (m. 594) menciona isso primeiro.
Os sermões de São Jerônimo e Santo Agostinho para esta festa [da Assunção], no
entanto, são espúrios”
(Fonte)
Ou seja, até a
Enciclopédia Católica reconhece que toda a base que se tem para essa crença são
obras espúrias (falsificações) feitas para enganar otário da Idade Média (com
sucesso), e que de obras autênticas temos – pasme – autores que viveram 6 ou 7
séculos depois de Cristo(!), que obviamente não foram testemunhas oculares de
assunção nenhuma, nem testemunhas de testemunhas, nem ninguém que seja
minimamente digno de crédito – e contra o testemunho
unânime de todos os Pais da Igreja que viveram nos primeiros séculos
(incluindo alguns que escreveram muito sobre Maria e sobre assunção, mas
nunca sobre assunção de Maria).
Sem sombra de dúvida,
a assunção de Maria entra para o rol dos dogmas mais infundados e fantasiosos
de todos os tempos, um mito impossível de ser levado a sério por estudiosos que
não estejam inteiramente condicionados a aceitar qualquer coisa que Roma defina
como verdade. É preciso lembrar que para os católicos a assunção de Maria não é
uma doutrina periférica ou secundária, mas um dogma indiscutível, central e necessário de se crer para a salvação
(a despeito da imensidão do deserto que são as evidências em seu favor). Essa
crença é um bom exemplo de como as autoridades católicas especulam os ensinos
mais improváveis possíveis, depois de modo ainda mais irresponsável transformam
isso em dogma e ainda exigem crer nisso incondicionalmente.
O próprio papa Pio XII
enche de maldições aqueles que ousarem pôr em dúvida o que ele decretou,
dizendo que “se alguém, o que Deus não permita,
ousar, voluntariamente, negar ou pôr em dúvida esta nossa definição, saiba que
naufraga na fé divina e católica... a ninguém, pois, seja lícito infringir esta
nossa declaração, proclamação e definição, ou temerariamente opor-se-lhe e
contrariá-la. Se alguém presumir intentá-lo, saiba que incorre na indignação de
Deus onipotente e dos bem-aventurados apóstolos Pedro e Paulo” (fonte).
Não basta inventar um dogma que contraria séculos de Cristianismo: tem que
lançar praga em quem não concorda, apelando até mesmo a quem já morreu, ou
senão não é Igreja Católica.
• Para se aprofundar no tema, consulte:
• O sermão apócrifo de Agostinho e a carta espúria de Jerónimo sobre a assunção de Maria aos céus
Fonte: lucasbanzoli.com
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