quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Maria foi assunta aos céus?

 

(Não me pergunte o que aqueles bebês fazem ali embaixo)

A crença na assunção de Maria é um dogma assumido pela Igreja Católica desde novembro de 1950, quando o papa Pio XII decidiu usar sua infalibilidade para decretar que «a imaculada e sempre virgem Maria foi assunta em corpo e alma à glória celestial», em sua constituição apostólica Munificentissimus Deus. Ou seja, é um dogma mais recente que o fatídico “Maracanaço”, quando o Brasil perdeu a Copa para o Uruguai em julho do mesmo ano. A razão pela qual os papas demoraram tanto para decretar esse dogma (mesmo sendo infalíveis e não terem como errar) é porque sabiam que ele é fraquíssimo e insustentável, seja em termos bíblicos ou mais ainda em termos históricos.

Embora a maioria dos teólogos católicos atualmente reconheça que essa crença não possui amparo bíblico, no documento do papa Pio XII ele cita apenas um texto, o de Gênesis 3:15, que supostamente diz que a mulher esmagaria a cabeça da serpente. O problema é que no original hebraico isso é uma alusão ao próprio Cristo, não à “mulher”, que também não é Maria (quem quiser ler sobre isso, confira este artigo do meu blog antigo). E mesmo se estivesse dizendo que Maria esmaga a cabeça da serpente, o que isso nos fala sobre uma assunção de corpo e alma? Nada.

Talvez por isso, os apologistas católicos modernos prefiram recorrer a um outro texto, o de Apocalipse 12. Mais uma vez, dois problemas aparecem: o primeiro é que todas as evidências textuais apontam claramente que a “mulher” neste contexto apocalíptico simbólico é uma figura de Israel, não de Maria (sobre isso, escrevi aqui). E o segundo é que, novamente, não há nada em Apocalipse 12 que sugira que a “mulher” foi arrebatada ao céu. Pelo contrário: a única parte que fala de uma assunção é a que diz que seu filho foi arrebatado para junto de Deus e de seu trono” (Ap 12:5), não ela mesma. Portanto, para o lixo mais este argumento.

Uma vez que a Bíblia silencia completamente a respeito de uma suposta assunção de Maria, chegamos ao ponto crucial: a patrística. Se Maria tivesse sido mesmo assunta aos céus e isso fosse de conhecimento dos apóstolos, isso logo ficaria claro a todos os cristãos, e os Pais da Igreja não hesitariam em escrever sobre isso, sobretudo em contextos que fazem menção a Maria e a seu destino final. No entanto, mais uma vez nos deparamos com um silêncio sepulcral. Até mesmo os historiadores católicos mais renomados reconhecem isso, como o conceituado erudito e padre católico Raymond Brown (1928-1998).

Para quem não sabe, Brown foi nomeado pelo papa Paulo VI à Pontifícia Comissão Bíblica Romana, e com a aprovação da Igreja serviu durante muitos anos na Comissão de Fé e Constituição do Conselho Mundial. A revista Time uma vez o descreveu como «provavelmente o melhor estudioso católico da Escritura nos EUA», sendo ele a única pessoa a ter servido como presidente de todas estas três sociedades distintas: Associação Bíblica Católica, Sociedade de Literatura Bíblica e a Sociedade de Estudos do Novo Testamento. Sua autoridade era tamanha que seus livros costumavam vir com o Nihil obstat e o Imprimatur da Igreja, o que significa que é suposto ser livre de erro moral e doutrinário. Em relação à assunção de Maria, assim ele escreve:

“Além disso, a noção da assunção de Maria ao céu não deixou qualquer vestígio na literatura do terceiro e muito menos do segundo século. M. Jugie, a principal autoridade sobre esta questão, concluiu em seu monumental estudo: «A tradição patrística anterior ao Concílio de Nicéia não fornece nenhuma testemunha sobre a Assunção»" (BROWN, Raymond. Maria no Novo Testamento. Mahwah: Paulist Press, 1978, p. 266)

Devemos perguntar: que dogma é esse que passa completamente despercebido por todos os Pais da Igreja durante pelo menos três séculos, nas palavras das maiores autoridades católicas sobre o tema? É preciso ser inacreditavelmente ingênuo (ou algo pior) para acreditar que todos os cristãos acreditavam nessa doutrina enquanto todos eles se silenciavam a respeito. Mas como tudo o que é ruim pode piorar, temos um testemunho ainda mais contundente do que o silêncio unânime dos Pais da Igreja. Trata-se de Epifânio de Salamina (310-403), que em finais do século IV escreveu um tratado interessantíssimo, intitulado "Os Últimos Dias da Virgem Maria" (que você pode ler aqui).

Um Pai da Igreja escrevendo um tratado especificamente sobre os últimos dias de Maria! Esta era a ocasião mais que perfeita para registrar aquilo que todo e qualquer católico de respeito não perderia a oportunidade de dizer: que Maria foi assunta aos céus de corpo e alma. Mas na parte final do livro, ele simplesmente diz que “se Maria morreu ou não, nós não sabemos, porque "a Sagrada Escritura, transcendendo aqui a capacidade da mente humana, deixa a coisa na incerteza". E termina o livro, sem assunção nem nada. Ou seja, um Pai da Igreja do século IV não sabia nada a respeito do fim que Maria teve, nem disse nada sobre uma suposta assunção, mas em pleno ano de 1950 o papa Pio XII tinha certeza desse dogma, e ainda quis nos convencer de que foi um ensino passado adiante de boca em boca até chegar ao século XX! Seria cômico, se não fosse trágico.

Está claro que a única base que Epifânio tinha sobre Maria era a Escritura (nada de tradição oral), então ele não podia cravar nada. Se existisse uma tradição oral com o mesmo peso da Bíblia confirmando que Maria foi assunta aos céus, ele teria no mínimo aludido a essa tradição, mas claramente não é o que faz. Se fosse conhecida dos cristãos de sua época a assunção de Maria, ele não perderia a oportunidade de mencioná-la em uma obra dessa natureza, mas não chega nem perto disso. Os primeiros textos falando de assunção de Maria são apócrifos e bem tardios, de muito tempo após Epifânio, um tipo de evidência que nenhum estudioso respeitável levaria a sério (mas que foi o suficiente para convencer o papa Pio XII, que obrigou toda a Igreja a crer no mesmo).

Durante a Idade Média, muitos documentos foram falsificados e falsamente atribuídos a Pais da Igreja como Agostinho e Jerônimo (como você pode ler aqui), o que ajudou a tornar essa lenda mais popular (somada à tendência de exaltar cada vez mais a figura de Maria, uma característica peculiar da Igreja medieval). É curioso notar que o próprio Agostinho, que muitas vezes enfatizou a mãe de Jesus, passou longe de aludir a qualquer ensino do tipo. Em seus escritos, tudo o que temos é uma fala de Fausto (um maniqueísta) dizendo a Agostinho:

“Se Elias, ao contrário da natureza, vive para sempre, por que não permitir que Jesus, sem maior contrariedade à natureza, poderia permanecer na morte por três dias? Além disso, não apenas Elias, mas também Moisés e Enoque, vocês acreditam ser imortais e terem sido levados com seus corpos para o céu. Assim, se é um bom argumento que Jesus era um homem porque Ele morreu, é um argumento igualmente bom que Elias não era um homem porque ele não morreu. Mas, como é falso que Elias não era um homem, apesar de sua suposta imortalidade, também é falso que Jesus era um homem, embora se considere que ele tenha morrido” (AGOSTINHO. Resposta a Fausto, o maniqueísta. Livro 26, c. 1)

O debate era sobre a natureza de Jesus. Agostinho dizia que Jesus era um homem e usava como argumento o fato de Jesus ter morrido, então Fausto (que negava a humanidade de Cristo) reverte esse argumento contra Agostinho, citando a crença cristã na assunção de Elias, Moisés e Enoque (apesar do próprio Fausto discordar disso), como se isso provasse que eles não eram humanos pela lógica de Agostinho. Observe que embora a discussão central fosse a humanidade de Cristo, temos aqui uma importante informação histórica sobre a crença dos cristãos daquela época, que acreditavam ser imortais e terem sido levados com seus corpos ao céu apenas três pessoas: Elias, Moisés e Enoque (a respeito de Moisés, confira este artigo).

Se os cristãos cressem que Maria também foi assunta ao céu corporalmente, sem dúvida ele a mencionaria também, o que reforçaria ainda mais o seu argumento contra Agostinho. Afinal, trata-se de ninguém menos que a mãe de Jesus, não de uma pessoa qualquer. No entanto, nada a seu respeito é dito. Será que Fausto era profundamente ignorante a respeito do que os cristãos criam, a ponto de não saber nada sobre a assunção de Maria? Se este fosse o caso, como ele conseguiu saber dos outros três? No mínimo, os cristãos da época escondiam muito bem a crença na assunção de Maria, para que nem um descrente ficasse sabendo dela (embora soubesse das outras). Neste caso, o próprio Agostinho o corrigiria, e lhe mostraria que ele havia se esquecido de Maria, que não poderia ficar de fora. No entanto, Agostinho não o corrige em momento algum, ou seja, trata como se Fausto tivesse dito uma verdade (no que compete a essa crença cristã).

O silêncio bíblico e patrístico, o testemunho de Epifânio e os diálogos de Agostinho se somam a milhares de outras evidências históricas que tornam extremamente improvável a crença numa assunção de Maria – basicamente a mesma improbabilidade de você ganhar na loteria dez vezes seguidas. Não vou passar todas essas evidências aqui para não tornar o artigo excessivamente longo, mas você pode consultar os artigos recomendados ao final deste. Em resumo, após séculos de silêncio absoluto de todos os escritores bíblicos e patrísticos, foi preciso que um livro apócrifo de um pseudo-Dionísio (que por um descuido foi aceito como autêntico no século VII) fizesse alusão a uma assunção de Maria pela primeira vez – depois que descobriram a falsificação, o estrago já estava feito.

E não pense que essa ausência completa de evidências sérias seja uma “acusação protestante”. A própria Enciclopédia Católica, como você pode conferir aqui, reconhece isso abertamente quando diz:

“A crença na assunção corpórea de Maria baseia-se no tratado apócrifo De Obitu S. Dominae, com o nome de São João, que pertence, no entanto, ao quarto ou quinto século. Ele também é encontrado no livro De Transitu Virginis, falsamente atribuído a São Melitão de Sardes, e em uma carta falsa atribuída a São Dionísio, o Areopagita. Se consultarmos escritos genuínos no Oriente, isso é mencionado nos sermões de Santo André de Creta (m. 740), São João Damasceno (m. 749), São Modesto de Jerusalém (c. 634) e outros. No Ocidente, São Gregório de Tours (m. 594) menciona isso primeiro. Os sermões de São Jerônimo e Santo Agostinho para esta festa [da Assunção], no entanto, são espúrios (Fonte)

Ou seja, até a Enciclopédia Católica reconhece que toda a base que se tem para essa crença são obras espúrias (falsificações) feitas para enganar otário da Idade Média (com sucesso), e que de obras autênticas temos – pasme – autores que viveram 6 ou 7 séculos depois de Cristo(!), que obviamente não foram testemunhas oculares de assunção nenhuma, nem testemunhas de testemunhas, nem ninguém que seja minimamente digno de crédito – e contra o testemunho unânime de todos os Pais da Igreja que viveram nos primeiros séculos (incluindo alguns que escreveram muito sobre Maria e sobre assunção, mas nunca sobre assunção de Maria).

Sem sombra de dúvida, a assunção de Maria entra para o rol dos dogmas mais infundados e fantasiosos de todos os tempos, um mito impossível de ser levado a sério por estudiosos que não estejam inteiramente condicionados a aceitar qualquer coisa que Roma defina como verdade. É preciso lembrar que para os católicos a assunção de Maria não é uma doutrina periférica ou secundária, mas um dogma indiscutível, central e necessário de se crer para a salvação (a despeito da imensidão do deserto que são as evidências em seu favor). Essa crença é um bom exemplo de como as autoridades católicas especulam os ensinos mais improváveis possíveis, depois de modo ainda mais irresponsável transformam isso em dogma e ainda exigem crer nisso incondicionalmente.

O próprio papa Pio XII enche de maldições aqueles que ousarem pôr em dúvida o que ele decretou, dizendo que “se alguém, o que Deus não permita, ousar, voluntariamente, negar ou pôr em dúvida esta nossa definição, saiba que naufraga na fé divina e católica... a ninguém, pois, seja lícito infringir esta nossa declaração, proclamação e definição, ou temerariamente opor-se-lhe e contrariá-la. Se alguém presumir intentá-lo, saiba que incorre na indignação de Deus onipotente e dos bem-aventurados apóstolos Pedro e Paulo” (fonte). Não basta inventar um dogma que contraria séculos de Cristianismo: tem que lançar praga em quem não concorda, apelando até mesmo a quem já morreu, ou senão não é Igreja Católica.

Para se aprofundar no tema, consulte:

• O sermão apócrifo de Agostinho e a carta espúria de Jerónimo sobre a assunção de Maria aos céus

 

Fonte: lucasbanzoli.com

 


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