“Era
pouco mais de 20 horas de uma sexta-feira chuvosa. Luizinho, recém convertido
através do “encontro com Deus” e com muita vontade de saber mais sobre a fé que
lhe fora anunciada, chega para sua primeira aula na “escola de líderes” em uma
grande igreja neopentecostal adepta ao G12.
Luizinho,
muito empolgado e feliz por ter a oportunidade de aprender mais sobre a Bíblia,
indaga ao professor:
–
Estou louco para começar a estudar teologia com vocês, meus irmãos!
O
professor, com ar de reprovação, responde:
– Luizinho, aqui nós não
aprendemos teologia, pois você pode esfriar espiritualmente e desviar-se da fé,
porque a Bíblia diz que a letra mata, mas o espírito vivifica.
Luizinho
conferiu o versículo na Bíblia e convenceu-se do que o professor afirmou. A
partir de então, não se preocupou em estudar a Bíblia a fundo, concentrando-se
na “busca espiritual sobrenatural” e nos estudos dos manuais de estratégias
G12, dos quais o transformou num produtivo multiplicador de células. Porém,
depois de algum tempo não se teve mais notícias de Luizinho. Alguns dizem que o
mesmo desviou-se da fé por não ter conseguido bater as metas de multiplicação,
impostas pelo apóstolo líder da Igreja.
Outro
dia, irmã Mariazinha dirigiu-se ao templo de sua Igreja para um círculo de
oração, juntamente com o Pastor e demais irmãos. Logo, começaram uma oração
forte pela restituição financeira. Mariazinha, de forma desesperada, pede uma
oração ao Pastor afirmando que estava preocupada, pois além de desempregada,
todo o dinheiro que ela tinha recebido de um acerto trabalhista havia se
perdido em apenas um dia, gasto compulsivamente com roupas e eletrônicos. O
Pastor, ao orar, proclamou:
–
Satanás, devolva o dinheiro que você roubou da Mariazinha, em nome de Jesus!
–
Pastor, então foi Satanás que roubou meu dinheiro? – de forma duvidosa a irmã
pergunta.
–
Claro irmã, você nunca leu, na Bíblia, que o diabo veio para roubar, matar e
destruir? Está escrito lá em João 10:10 – responde o Pastor.”
Estas
são histórias fictícias, porém realísticas no sentido ilustrativo do que
acontece em muitas igrejas. Trata-se de um dos maiores problemas enfrentados em
muitas denominações brasileiras, principalmente neopentecostais: a falência da
correta interpretação bíblica. Ou, se preferirem: a superficialidade bíblica!
Interpretar
as escrituras de maneira alegórica, pegando textos isolados de seus respectivos
contextos, transformando-os em pretextos para justificar a espiritualidade
mística particular, é o que podemos denominar de “neomisticismo herético”.
Trata-se de uma perniciosa prática de interpretação que ignora totalmente a
análise teológica
dos textos bíblicos, pois defende que o necessário para se ler a Bíblia é
unicamente à oração e o jejum, posteriormente a iluminação do Espírito Santo
virá sobre o texto como revelação. Em muitas Igrejas contemporâneas, esta
prática é defendida com afinco, embora não seja algo novo.
Este
método é errado e perigoso, pois ignora totalmente o entendimento correto dos
textos bíblicos e exprime alegoricamente o significado segundo a interpretação
particular de quem lê. Neste caso, a Bíblia deixa de ser a palavra de Deus para
tornar-se palavra individual de quem interpreta, proporcionando assim as mais
absurdas interpretações místicas.
Calvino
defendia a hermenêutica “orare
et labutare”, ou seja, a oração para buscar a iluminação do
Espírito Santo, juntamente com o estudo diligente da Bíblia através do método
gramático-histórico[1]. Para ilustrar este método, Lutero empregou uma figura
como exemplo: “um
barco com dois remos, o remo da oração e o remo do estudo. Com um só destes
remos, navega-se em círculo, perde-se o rumo, e corre-se o risco de não chegar
a lugar algum.”[2]
Oração
e estudo são princípios básicos fundamentais para compreender as Escrituras.
Para tanto, você não precisa ser um exímio exegeta acadêmico, embora reconheça
a grande importância do preparo teológico para todos. Em todo caso, para
detectar os erros de interpretação bíblica, em primeira instância basta
analisar o contexto direto, ou seja, os versículos que precedem e os que seguem
imediatamente nas passagens bíblicas.
O
contexto imediato informa o verdadeiro entendimento consistente na passagem,
bem como o pano de fundo em que o autor escreveu (tema, propósitos do autor,
cenário histórico, tipo de literatura – parábola – poesia – apocalíptica –
ensino, a quem foi escrito etc.). Deve-se levar em conta também o contexto
amplo nas Escrituras (quais são as outras passagens na Bíblia que abordam sobre
o mesmo assunto) e por último, caso seja necessário, incluir no estudo a
identificação de termos chaves (palavras difíceis que necessitam de análise
textual), nos quais um bom dicionário linguístico e uma concordância bíblica
podem ajudar. Com estes importantes passos hermenêuticos, chegaremos ao correto
entendimento bíblico[3].
Depois
desta explicação básica, agora vamos pegar os exemplos das passagens bíblicas
citadas no começo do artigo, para analisar o nível de gravidade que um texto
mal interpretado pode ocasionar.
A
primeira passagem citada de forma superficial é a segunda parte de 2Co 3:6,
onde diz: “porque a
letra mata, mas o espírito vivifica“.
Conforme
foi utilizado no caso fictício apresentado, muita gente cai no mesmo erro ao
afirmar que a “letra” (o ensino teológico) “mata” a fé do crente, enquanto o
“espírito” vivifica. Ou seja, o ensino teológico é amplamente marginalizado com
esta afirmação, transformando-o em motivo para esfriamento de fé.
Neste
caso, estaria o Apóstolo Paulo afirmando que o estudo das escrituras seria um
suicídio espiritual? Ou melhor: Estaria Paulo indo contra a sua própria
erudição e conhecimento teológico, dos quais ele mesmo utilizou diversas vezes
para pregar o evangelho (Atos 17, 18 e 19)?
Na
verdade, o contexto direto desta passagem nos dá a resposta:
“3: Estando já manifestos como carta de Cristo,
produzida pelo nosso ministério, escrita não com tinta, mas pelo Espírito do
Deus vivente, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, isto é,
nos corações. 4: E é por intermédio de Cristo que temos tal confiança em
Deus; 5: não que, por nós mesmos, sejamos capazes de pensar alguma coisa, como
se partisse de nós; pelo contrário, a nossa suficiência vem de Deus, 6: o qual
nos habilitou para sermos ministros de uma nova aliança, não da letra,
mas do espírito; porque a letra mata, mas o espírito vivifica. 7: E, se o ministério
da morte, gravado com letras em pedras, se revestiu de glória, a ponto de
os filhos de Israel não poderem fitar a face de Moisés, por causa da glória do
seu rosto, ainda que desvanecente, 8: como não será de maior glória o
ministério do Espírito!” (2 Co 3:3-8, negrito meu)
Após
a leitura do contexto direto, não é difícil perceber que Paulo estava falando
da superioridade da nova aliança sobre a antiga! A “letra” que o apóstolo fala
não é o ensino teológico, mas sim uma alusão à lei mosaica (vs 3 e 7), na qual
a mesma “mata” pelo fato da necessidade de obediência irrestrita, algo
inalcançável, devido o peso de glória contraposto ao corrompido ser humano em
pecado, trazendo assim morte espiritual (Gl 3:10). Porém, o espírito vivifica
pelo ato de escrever a lei de Deus nas “placas de carne”, ou seja, em nossos
corações (vs 3).
Portanto,
esta passagem não dá qualquer margem de interpretação para afirmar uma
condenação ao ensino teológico. Na verdade, é importante colocar o significado
da palavra Teologia: no grego théos
= Deus + logos
= conhecimento[4]. A teologia então, simplesmente é uma forma de se organizar o
estudo sobre Deus, sobre os ensinos bíblicos. Em outras palavras, quando você
estuda a Bíblia, você está fazendo teologia!
A
segunda passagem interpretada de forma superficial é: “O ladrão vem somente para
roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida, e a tenham em
abundância.” (Jo 10.10)
Estaria
Jesus afirmando nesta passagem que o ladrão que mata, rouba e destrói é
Satanás? Embora eu reconheça que as intenções do adversário, de fato são essas,
o contexto direto da passagem nos dá uma pista de quem é o “ladrão” que Jesus
está se referindo, bem como no contexto amplo mostra com exatidão o sentido da
metáfora de Jesus, vejamos:
“8:Todos quantos vieram antes de mim são ladrões
e salteadores; mas as ovelhas não lhes deram ouvido. 9: Eu sou a porta. Se
alguém entrar por mim, será salvo; entrará, e sairá, e achará passagem. 10: O
ladrão vem somente para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida e
a tenham em abundância. 11: Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas
ovelhas. 12: O mercenário, que não é pastor, a quem não pertencem as
ovelhas, vê vir o lobo, abandona as ovelhas e foge; então, o lobo as
arrebata e dispersa. 13: O mercenário foge, porque é mercenário e não tem
cuidado com as ovelhas. 14: Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas,
e elas me conhecem a mim, 15: assim como o Pai me conhece a mim, e eu conheço o
Pai; e dou a minha vida pelas ovelhas.” (Jo 10:8-15, negrito meu)
Juntando
todo o contexto da passagem, notamos que Jesus não está especificando alguém em
particular como “ladrão supremo”. Mas direciona um conceito genérico para
aqueles que tomam o bem alheio de forma indevida, mesmo que tal atitude inclua
matar e destruir. Ao contrário da obra de Cristo que é trazer vida em
abundância (leia-se vida espiritual, vida eterna), os “falsos mestres” agiam
como verdadeiros ladrões mercenários. O mercenário que pastoreia as ovelhas
para fins lucrativos, no primeiro momento de perigo as abandona (vs 12). Ele
não tem genuíno cuidado para com as ovelhas, pois é falso pastor (vs 13), desta
maneira o rebanho torna-se presa fácil para lobos. O bom pastor conhece as suas
ovelhas e dá a vida por elas (vs 15). Este era o foco metafórico de Jesus.
Enfim,
após o exame detalhado das duas passagens que pegamos como exemplo, podemos ver
o quanto uma interpretação alegórica pode prejudicar o correto entendimento
bíblico.
Precisamos
corrigir este problema de maneira urgente. A Hermenêutica deve ser matéria
obrigatória em todas as escolas bíblicas dominicais e grupos de estudos, pois
se não interpretarmos a Bíblia da maneira correta, como vamos conhecer a
vontade de Deus através de sua Palavra? Para tanto, precisamos de preparo
adequado para compreender corretamente os ensinos bíblicos. Isto é obrigação de
todos, principalmente das lideranças da Igreja.
Sola
Scriptura!
NOTAS:
[1] Para maiores informações sobre o método
Hermenêutico Gramático-Histórico, veja no link abaixo:
[2] Citado por Paulo R. B. Anglada em:
Hermenêutica Reformada das Escrituras. Fides Reformata 02/01/1997.
[3] Para um melhor entendimento sobre como fazer
uma hermenêutica correta, veja este excelente guia: http://www.monergismo.com/textos/hermeneuticas/guia_interpretacao_biblica_white.htm
[4] Dicionário Bíblico Strong – Léxico Hebraico,
Aramaico e Grego – SBB – 2002, págs. 1401 e 1488.
Fonte: www.napec.org
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