“Pode-se, pois, reconhecer que há um Deus sem se
saber o que é. […] se pode conhecer muito bem a existência de uma coisa sem lhe
conhecer a natureza.” (B. Pascal, Pensamentos, III,233).
Discernir
a piedade cristã da espiritualidade mística-pluralista sem que se tenha uma
cosmovisão teorreferente nos fundamentos prementes das doutrinas de Cristo é
praticamente impossível, uma vez que impossibilita a hiatização do
Criador-criatura, o eu-Tu, e a justaposição do homem no universo criado por
Deus.
Prima facie, espiritualidade e
piedade são inseparáveis. Apontam a essência do homem. João Calvino ligava-as
ao seu supremo propósito: soli
Deo gloria. Esta, por sua vez, decorreria consequentemente à
antropologia: imago
Dei– incapaz de hiatizar o corpo da alma, o secular do sagrado, mas
cuidadosa quanto a distinção entre Deus e o homem, o Espírito de Deus e o mundo
por ele criado.
Paradoxalmente,
a doutrina da encarnação do Filho de Deus traz o homem a viver apropriadamente
esta realidade: o mundo de Deus e o mundo dos homens como um mesmo mundo, onde
Deus é condescendente por participar vida a homens cujo estatuto do ser era
menos do que nada. E, não é à toa que Soren Kierkegaard (teólogo dinamarquês)
propôs o ‘salto da fé’; Nietzsche preferiu a ideia do ‘além-homem’. Todavia,
para o cristão, tal paradoxo constitui-se não na pedra de escândalo, mas na
pedra angular, o ponto de equilíbrio entre a sua existência e sua relação com
as “coisas” que estão ao seu exterior.
Logo,
fica evidente que no Cristianismo a própria noção de espiritualidade e natureza
não deve ser tratada como separação ou união Deus-homem. As confissões de fé e
credos, sustentados ainda hoje por muitas igrejas cristãs, baseiam ambas as
realidades: a divina e a humana- realizadas na Pessoa de Jesus Cristo. Trata-se
de dimensões teológicas da Reforma, cujas raízes são oriundas da doutrina da
união mística com Cristo, e a sua aplicação nada mais é que a justificação e
santificação.
Não
é difícil entender o porquê de urgir uma espiritualidade que seja
verdadeiramente cristocêntrica hoje. Cristo torna-se o eixo sobre o qual toda
cosmovisão faz sentido ao homem. É deste modo que é impossível relativizar toda
ideia de existência, toda definição de coisas, bem como, materializar o cosmo.
Contudo,
o mundo atual segue oposto a fundamentação de Cristo como ponto convergente a
toda espiritualidade. Isto soa irônico, pois, a própria espiritualidade
centrada em Cristo é pessimista quanto a sua fácil aceitação no mundo. A
espiritualidade cristã centraliza-se na tríade diretória:
criação-queda-redenção, e espera do homem uma certa relutância natural quanto a
esta teleologia, pois é um dos sinais confirmatórios de sua verdade. Herman
Dooyeweerd, filósofo reformacional, acredita que o homem se mantém sobre a
estrutura imago Dei; todavia, caído, o homem segue direção oposta à
estrutura/forma para a qual fora criado. Explica que o pecado original não poderia destruir o centro religioso da existência humana e
o seu impulso religioso inato de buscar sua origem absoluta. Ele poderia apenas
conduzir esse impulso central para uma direção falsa, apóstata, desviando-se em
direção ao mundo temporal com sua rica diversidade de aspectos, os quais,
entretanto, têm apenas um sentido relativo.[1]
Ora,
isto é significativo, pois dirige-nos os olhos ao discernimento da
espiritualidade atual. Nada soa tão verdadeiro quanto o fato de que, se na
modernidade o homem era considerado o ‘homo
sapiens’ (em detrimento à centralidade da Razão) hoje, ele se
mostra como verdadeiramente sempre o foi: ‘homo
religionis’ (em detrimento à perda tanto da Razão ou do eu como
sujeitos, atualmente, o subjetivismo não sustenta, per si, a unidade de
interpretação de toda a realidade percebida imediatamente pelo ‘eu’; aliás, que
eu?). Os “substitutos” de Deus na história dos homens, quer epistêmicos ou
filosóficos, caíram à uma, e em seus lugares ergue uma espiritualidade sombra
do vazio, desespero, descrença e desilusão. Mas este movimento histórico-
teológico é paradoxal. A crescente espiritualidade é protesto contra Deus da
mesma forma em que um ateu diga que “Deus está morto”. Porém, todo esse esforço
não nos remete apenas à rebeldia idolátrica. Misticismo e niilismo nos remetem,
pelos seus esforços contrários à realidade daquilo que negam. Sim, pois, se um
ateu nega a realidade da existência do Deus Pessoal, o místico também o nega,
caso tomemos as Escrituras como a Palavra de Deus. O homem rebelde, que “fugiu
de casa, do benfazejo amor do Pai.” “Seu Pai ainda o alimenta. Ainda assim,
despreza as riquezas de sua bondade” (C. Van Til, O Pastor Reformado e o
Pensamento Moderno, Cultura Cristã, p.47).
As
Escrituras sempre apontaram Deus como o fundamento essencial do homem. Mas
disto decorre também o perigo: idolatria. Calvino enceta o perigo quando
considera que o pecado tornou o homem em fábrica de fantasias e ídolos,
enquanto Dooyeweerd o sintetiza como coração incrivelmente idólatra. Ambos corroboram
a verdade de que, para o Cristianismo, o homem é dimensionado pela sua relação
com Deus; sobretudo, mediante Jesus Cristo. Em Jesus Cristo, o sensu
divinitatis é corretamente voltado para Deus- não reduz nem aumenta a dignidade
do homem. Cristo centraliza o homem entre o Criador e a criatura.
Assim,
a espiritualidade, como inerente a todos os homens, faz com que até mesmo o
ateu a possua, e mesmo quando “diz o néscio em seu coração: não há Deus”, ao
dizê-lo só o faz depois de tê-lo percebido no coração. Portanto, torna-se uma
negação vazia frente à realidade da existência de Deus, conclui Anselmo de
Aosta no Proslógion. A realidade vivenciada pelo homem é derivativa; ou seja, é
experienciada pelo indivíduo segundo Deus. O homem tem acesso imediato a ela, e
só depois é que esta realidade derivada de Deus é mediata pela sua consciência,
e então pode ser objetável. Todavia, a supressão desta realidade nada mais é do
que um ato apóstata e idolátrico.
Fica
óbvio, então, que o sensu
divinitatis ou a imagem de Deus no homem, não faz de qualquer
interpretação da realidade um culto ou da religião uma verdadeira
espiritualidade. Sem que se assuma a existência da convergência de todas as
coisas à Pessoa de Jesus Cristo, toda espiritualidade estará voltada para a divinização
do homem e a humanização de Deus- uma inversão de realidades (terrível
idolatria!). E, por não conseguir satisfazer-se com a inversão ontológica, o
homem media para sua religião objetos limitados pelo seu próprio estado como se
fossem naturais no culto a Deus.
Talvez,
a ‘espiritualidade cristocêntrica’, hoje, seja desafiada a caminhar com a fé
sem que a entenda como um ‘salto no escuro’, sem que a torne em um poder
místico que transforma homem pecadores em ‘além-homem’. Que desafie o homem a
aceitar a sua miséria, e que ao ouvir o clamor de sua alma por Deus, consiga
discernir a sua posição entre a queda e a redenção, tal qual Pascal pontuou.[2]
E isto somente uma espiritualidade centrada em Cristo o pode dar.
Urge
a necessidade de se voltar aos fundamentos bíblicos, onde a simplicidade da
mensagem não significa descuido com o intelecto e com o coração, Mas céu e
terra são sagrados, o pecado é uma realidade e o perdão de Deus uma experiência
verdadeira em Cristo Jesus.
A
espiritualidade cristocêntrica é, per si, o próprio desafio ao homem que se
volta à religião em que Cristo é tudo, menos Aquele que se faz sentido do
próprio eu do sujeito.
[1] DOOYEWEERD, H. No crepúsculo do
pensamento ocidental: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento,
São Paulo: Hagnos, 2010, p.260.
[2] PASCAL, B. Pensamentos, São Paulo:
Difusão europeia do livro, 1957, p.62: “Afinal que é o homem dentro da
natureza? Nada em relação ao infinito; tudo em relação ao nada; um ponto
intermediário entre tudo e nada. Infinitamente incapaz de compreender os
extremos, tanto o fim das coisas como o seu princípio permanecem ocultos num
segredo impenetrável, e é-lhe igualmente impossível ver o nada de onde saiu e o
infinito que o envolve. Que poderá fazer, portanto, senão perceber alguma
aparência das coisas num eterno desespero por não poder conhecer nem o
princípio nem seu fim? Todas as coisas saíram do nada e foram levadas para o
infinito; quem seguirá estes caminhos assombrosos? O autor destas maravilhas
conhece-os; e ninguém mais.”
Fonte: www.napec.org
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