Os crentes mais antigos já devem ter se deparado com disputas teológicas entre arminianos e calvinistas. Para quem não sabe, o debate entre os dois grupos gira em torno, basicamente, da polêmica entre a existência de livre-arbítrio para crer no Evangelho. Os dois grupos recorrem a um compêndio de textos bíblicos para fundamentar suas teses, deixando qualquer leigo sem posição definida atônito diante de duas hipóteses concorrentes largamente embasadas no mesmo livro.
Como calvinista, entendo que nossa vontade está condicionada aos propósitos divinos ao mesmo tempo que Deus nos faculta escolhas. As duas situações coexistem! Mas não há espaço aqui para discutir esse tópico. Minha intenção é levá-lo a refletir sobre os paradoxos existentes na Bíblia e que podem trazer certa confusão, como na polêmica existente entre arminianos e calvinistas.
Nos vemos diante de um paradoxo quando Jesus nos diz que: os últimos serão os primeiros (Mt 20:16) ou que o menor é o maior (Lc 22:26); seu fardo é leve (Mt 11:30) ao mesmo tempo que temos de carregar nossa própria cruz e negar a nós mesmos (Mc 8:34); é chegado o Reino de Deus (Mt 3:2), o qual, contudo, não é deste mundo (Jo 18:36). Paulo, por sua vez, em um testemunho pessoal chega à conclusão de que quando está fraco é que está forte (2 Co12:10). E ainda podemos observar que enquanto nas cartas apostólicas por diversas vezes se enfatiza a salvação pela graça (Ef 2:8-9), em Tiago lemos que a fé sem obras é morta (Tg 2:14-17) e em Hebreus somos lembrados que sem santidade ninguém verá a Deus (Hb 12:14).
A interpretação precipitada desses ensinamentos aparentemente contraditórios têm resultado em um sem-número de divergências doutrinárias, especialmente no tocante ao entendimento da doutrina da graça. Enquanto alguns, por exemplo, enfatizam a graça, outros se focam nos aspectos morais e nas obras. Em geral essa torre de babel de interpretações decorre da simples negligência de princípios básicos de exegese e interpretação, como desconsiderar os destinatários primários dos textos bíblicos, objetivos do autor, contextos etc. E aqui me apropriarei da figura do corpo humano para explanar melhor sobre esse tema.
Paulo usa o corpo humano para dissertar a respeito dos dons pois um corpo, como bem observa o apóstolo, é equilibrado. E é justamente esse equilíbrio que nos falta ao refletir e optar por um lado nas controvérsias. Quando se enfatiza muito a graça em detrimento das obras a intenção é, para resumir bastante, libertar os crentes das amarras do legalismo. No entanto, tal ênfase na graça pode levar a uma noção equivocada da importância da santidade e das obras, tendo como consequência principal um relaxamento no aspecto moral da vida. A doutrina da graça é, sem dúvida, uma doutrina central no cristianismo, atrelada diretamente à obra salvífica de Cristo e suas implicações para nós, mas pode trazer graves prejuízos quando é isolada da doutrina da santidade cristã. Se a graça é o coração do corpo, sendo responsável por bombear sangue para os demais órgãos, a santidade pode ser representada pelos rins, que filtram as impurezas. Sem o coração o corpo padece imediatamente, mas sem os rins, embora o corpo possa subsistir um pouco mais, ele também não sobreviverá. Desse modo, o primeiro benefício da aplicação correta dos dois ensinamentos bíblicos é que para se ter uma vida cristã saudável, equilibrada, é preciso compreender que seu esforço não pode contribuir para a salvação, mas que é imprescindível para uma vida em santidade e uma fé produtiva.
Essa tensão constante entre termos que parecem representar uma oposição e coexistirem parece intencional e até um padrão divino, pois se repete diversas vezes na Bíblia, como já mencionado. Podemos inferir, então, que a vida cristã é caracterizada por paradoxos, e o crente que não entende isso se perde em algum extremo.
Conforme Mt 5:4,11, somos bem-aventurados por chorarmos e sofrermos perseguição! O Sermão do Monte em seu início é quase uma apologia ao sofrimento, pois prega valores contrários ao instinto humano na maioria das vezes. O mundo é naturalmente injusto, e buscar justiça nele não poucas vezes requer sacrifício e uma boa dose de altruísmo. Ser manso numa sociedade que te impele a revidar e a impor-se para não ser pisado não é uma tarefa fácil. Ser manso, em muitas situações, é até mesmo contrário à natureza humana, especialmente quando estamos em posição de superioridade. Que se dirá então sobre ser misericordioso quando nossa vontade natural é retribuir o mal com mal?
O Evangelho não apenas nos apresenta realidades aparentemente paradoxais, como é vivenciado dessa forma. Nós até podemos entender facilmente o que foi discutido até aqui, mas viver esse Evangelho é que é o grande desafio, pois implica uma compreensão da própria existência que transcende a lógica do entendimento humano.
A lógica humana é linear, relativamente simples. Em termos gerais, eu planto e colho, trabalho e recebo. A lógica divina, que encontramos nas páginas bíblicas, porém, é um tanto diferente. Eu planto e outro pode colher, e isso é bênção para mim, que plantei. Eu trabalho, mas posso receber o mesmo de que quem não trabalha, e isso continua sendo justo. Não, não estou fazendo apologia ao socialismo! O fato é que as duas lógicas, tanto a humana como a divina, coexistem para os cristãos. Nós continuamos sendo abençoados se outro colhe os frutos do que plantamos, ao mesmo tempo que também é bênção eu mesmo colher. E receber sem trabalhar é basicamente a graça divina em nossas vidas. Continua sendo justo e funcionando a lógica humana e bíblica de que se alguém não quer trabalhar que não coma (2Ts 3:10), mas precisamos aceitar que recebemos a dádiva da salvação sem nada fazer por merecê-la. As duas realidades existem na vida do cristão, e em algum momento ele precisará aplicar uma ou outra. Há tempo para ser gracioso com o próximo, e tempo para recompensar os que trabalharam.
Acredito que a existência de tais paradoxos na Bíblia representa o distanciamento entre nossa capacidade de compreensão e o agir divino, assim como a transmissão dessas ideias pelos escritores bíblicos enfrentava as limitações da linguagem humana e do nível intelectual de cada autor. Por isso, fazemos contorcionismos para encaixar a lógica divina dentro das nossas limitações. Tentamos até explicar a trindade!
Talvez devamos tão somente aceitar que, mesmo sendo salvos pela graça, Deus quer que sejamos santos, quase (eu disse “quase”) como se nossa salvação dependesse de nós mesmos, tamanho o zelo e devoção com os quais devemos lidar com cada aspecto das nossas vidas. Somos salvos pela graça mas devemos buscar a perfeição (Mt 5:48). Se juntarmos os dois lados do debate sobre livre-arbítrio, quem sabe chegaremos a alguma conclusão que traga mais conforto e noção de responsabilidade aos cristãos, uma vez que entenderão ser impossível perder a dádiva da salvação, pois foram escolhidos por Ele, ao mesmo tempo que estarão conscientes de que é preciso escolher a melhor parte (Lc 10:42).
Por fim, e mais importante, sabendo que vivemos num tempo em que muitos se voltam para o Evangelho da Prosperidade ou dão ouvidos a pastores-coaches, precisamos compreender que as bem-aventuranças proferidas por Jesus em Mateus 5 não são apenas uma forma enigmática de representar a lógica do Reino de Deus, mas nos alertam sobre a realidade da vida cristã quando vivida integralmente. Se não entendemos que podemos ser bem-aventurados enquanto estamos tristes e sofrendo, então somos candidatos a repetir o erro dos israelitas que murmuraram depois de haverem sido libertados da escravidão no Egito.
Essa tensão entre opostos nos acompanhará até nossos últimos dias neste mundo, pois a lógica do reino de Deus é diferente da nossa. Nesse reino que, como diria Oscar Cullman,“já veio, mas ainda não”.
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Autor: Renato César
Fonte: https://bereianos.blogspot.com/
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