Outros textos afirmam que Cristo morreu pela “igreja” (Ef 5.25) ou pelas “ovelhas” (João 10.15) ou pelo povo ou nação (João 11.50, 51, 52; 18.14; cf. Hb 2.17). Neste último grupo de textos há o duplo entendimento de que Caifás esteja pensando em Jesus ser condenado à morte para o bem do povo judeu como um todo (evitar represálias Romanas se houvesse uma revolta messiânica), enquanto que João vê nisso uma profecia de sua morte em um senso salvífico.
Alguns textos afirmam que Cristo morreu por “muitos” (Mc 10.45; 14:24; Mt. 20.28; 26.28; cf. Hb. 2.10; 9:28), mas este termo é substituído por “você” em alguns paralelos (Lc 22.19 f.; 1 Co 11.24) ou por “todos” (1 Tm. 2.6) ou por “nós” (Tt 2.14). O termo “todos” também aparece em 2 Co 5.14, 15a, 15b; Hb. 2.9.
Finalmente, uma série de textos enfatizam que Cristo morreu pelos pecadores, os ímpios (Rm 5.6, 8; 1 Pe 3.18).
O que podemos tirar desses textos? O conceito de morrer por outros (que foi muito conhecido no mundo antigo é expresso usando linguagem baseada em Isaías 53. As palavras de Jesus na Última Ceia são direcionadas aos discípulos presentes (“vocês”), e esta aplicação torna-se generalizada quando pregadores e escritores dirigem-se aos crentes cristãos lembrando-lhes que Cristo morreu por “nós (todos)” ou por “vocês”.
Jesus veio para o povo de Deus existente, os judeus, a fim de trazer salvação a eles. Os judeus, apesar de serem o povo escolhido por Deus, são pecadores e precisam ter seu pecados removidos (Lc 2.10; cf. Mt 1.21). A oferta está aberta a todos, mesmo que nem todos a aceitem. Portanto, Jesus morre para o povo, ou seja, o povo judeu como um todo (João 11.50-52); mas ao mesmo tempo é reconhecido que o âmbito da sua morte se estende para o mundo como um todo (João 1.29).
Dentro deste contexto, é natural Jesus dizer que ele morre por aqueles que já são seus discípulos e amigos (João 15.13 f.), mas isso não anula os dizeres onde sua morte também é entendida de forma mais ampla, pelo povo ou pela nação. A figura do pastor deve ser tratada com cuidado. Quando Jesus aborda o tema do bom pastor que está disposto a morrer pelo bem estar das ovelhas, o quadro é de um pastor arriscando sua vida contra um animal selvagem atacando as ovelhas que já constituem o seu rebanho (Jo 10.12; cf 1. Sm 17.34-37). A realidade é um tanto quanto diferente, já que Jesus morre por causa do pecado e ele recebe a sua vida de volta. O material das parábolas não faz mais do que ilustrar o princípio da morte vicária. Não seria sensato, portanto, pressionar a parábola além da conta e afirmar que Jesus morreu somente por suas ovelhas, como se o pastor adquirisse o rebanho morrendo por ele. É claro que as ovelhas são dadas a ele pelo Pai, mas isso não diz nada sobre o alcance de sua morte. Forçar a linguagem e dizer que Jesus possui futuras ovelhas, por quem ele morre, certamente vai além do horizonte do imaginário. Mais provavelmente, o pensamento é primariamente do povo Judeu como o rebanho de Deus, do qual a continuação é dependente do vir a Cristo; mas há também outras ovelhas não deste aprisco, por quem presumivelmente ele também dá a sua vida. A parábola não exclui as declarações de âmbito mais amplo encontradas em outras partes do mesmo evangelho. Há certamente uma distinção feita entre “minhas ovelhas” e seus oponentes judeus que não são “minhas ovelhas”. Mas seria forçar demasiadamente a metáfora extrair dela a existência de um limite já fixado entre ovelhas de Jesus e outras ovelhas, principalmente sabendo que Jesus ainda está incentivando as pessoas a crerem nele (João 10.38).
Quando é declarado Jesus ter comprado a igreja pelo seu sangue (At 20.28) ou ter amado a Igreja e se entregado por ela (Ef 5.25; aqui a igreja é equivalente a “nós” em Ef. 5.2), a metáfora é aquela do resgate de pessoas (cf. Ap 5.9 f.), e é usada confessionalmente por aqueles que se beneficiaram do que Cristo fez. Aqui, o amor é para futura noiva, e é violentar o imaginário dizer que isso significa que Cristo morreu apenas para um grupo limitado de pessoas que estão destinados a ser a noiva.
Atos 20.28 é uma declaração sobre a importância de cuidar da igreja de Deus, cujo valor é visto no fato dele tê-la comprado com seu próprio sangue. A morte de Jesus leva à redenção da igreja, mas está fora do horizonte da metáfora, da maneira como ela é usada aqui, perguntar se isso implica que Deus decidiu secretamente quem pode fazer parte da igreja e quem é excluído dela.
Finalmente, em Rm 8.32-35, Deus entregou Jesus “por todos nós”, que são “aqueles quem Deus escolheu”, mas esta é a linguagem confessional, falada por aqueles a quem Deus admitiu entre os eleitos. Novamente, nada do que está declarado implica que Deus tenha limitado o escopo da morte de Jesus a este grupo. Em suma, essas passagens sugerem que Deus criou uma nova comunidade pelo morte de seu Filho e o ingresso de alguém nesta comunidade lhe dá um lugar entre aqueles por quem Cristo morreu. A pessoa que está dentro, pode confessar: “o Filho de Deus me amou e se entregou por mim”; comunidade sabe que Cristo morreu pelos nossos pecados.
Em 2 Co 5.14f. Paulo afirma que um morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou. Os defensores da expiação limitada insistem que “todos” não pode significar “todos, sem exceção” aqui, uma vez que implicaria universalismo, devido a declaração de que “todos morreram”.
Temos aqui o mesmo problema que em Rm 5.18, onde “assim como uma só transgressão resultou na condenação de todos os homens, assim também um só ato de justiça resultou na justificação que traz vida a todos os homens”; e em 1 Co 15.22: “Porque, assim como todos morrem em Adão, assim também todos serão vivificados em Cristo”. Em ambos os textos, estamos certamente diante do caso de que o primeiro “todos” refere-se a “todos sem exceção” (cf. Rm 3.23), e seria extraordinário se o segundo “todos” significasse qualquer outra coisa. A segunda parte de ambos os textos refere-se à disponibilidade de vida a todos que se tornará uma realidade para eles desde que creiam. Se assim for, estes textos tratam sobre a suficiência universal da morte de Cristo (uma doutrina aceita por Berkhof com base em outros textos). Por conseguinte, temos exemplos de que “todos” significa “todos sem exceção” em textos relativos à disponibilidade de salvação. A importância disso é que nós não precisamos tomar declarações sobre “todos” para se referir a “todos com exceção daqueles não pré-escolhidos”, e tal interpretação é de fato injustificada.
Isso indica como devemos encarar as afirmações em 2 Co 5.14f. Uma vez que Cristo morreu por todos, segue-se que os seres humanos devem viver para ele e não para si mesmos. Da mesma forma, em 2 Co 5.18-21, Paulo está escrevendo sobre uma reconciliação do mundo, que se tornará uma realidade para aqueles (“nós”) que crerem. Deus realmente já não leva mais em consideração as ofensas do mundo contra ele, mas esta oferta de reconciliação torna-se uma realidade apenas para aqueles que respondem a ela, e que não aceitam a graça de Deus em vão.
Estamos, desta forma, encorajados em aceitar o sentido natural de várias declarações. Quando Paulo diz que Cristo morreu pelos ímpios (Rm 5.6, 8), ele está sem dúvida pensando especificamente em seus leitores, pois ele quer argumentar que, se Cristo morreu por eles enquanto eles ainda eram fracos, ímpios pecadores, muito mais agora ele vai livrar do juízo aqueles que foram justificados. Mas não há nenhuma razão para qualificar de forma rígida “o ímpio”, dizendo que este se refere apenas aos “ímpios pré-escolhidos” que creram ou ainda crerão. Declarações que Cristo morreu por “nós” não carregam a implicação de que ele não morreu por ninguém mais.
Há reconhecidamente poucas asserções evangelísticas endereçadas àqueles que ainda não são salvos, que afirmem que Cristo morreu por todos ou por “vocês” que ainda não são salvos. Mas isto é facilmente explicado pelo fato de que o ensino do Novo Testamento é dirigido àqueles que já são crentes e pelo fato de que exemplos de pregações evangelísticas são poucos. No entanto, quando Paulo resume o evangelho que ele proclamou em Corinto como “Cristo morreu por nossos pecados” (1 Co 15.3), este é certamente o caso do pregador incluindo seu público não salvo com ele em uma declaração inclusiva. Isso mais certamente não é uma declaração de que ele morreu apenas pelos pecados daqueles que já são crentes. Declarações semelhantes em outros lugares (1 Ts 5.10) eram, sem dúvida, parte do kerygma (pregação).
Não adianta dizer que estas declarações têm a ver apenas com a “suficiência” ou “disponibilidade” (termo de Grudem) da morte de Cristo, já que a linguagem utilizada é exatamente a mesma daqueles textos que se referem a morte de Cristo por “nós” crentes. E como pode a expiação ser suficiente para todos se ela foi limitada a alguns?
O uso de “mundo”
Devemos agora considerar o uso do termo “mundo”. Este tema é especialmente encontrado em João e 1 João. Jesus veio trazer salvação para o mundo (João 1.29, 3:16; 4:42, 6.33, 51; 12.46f.; 1 João 2.2; 4.14). O fato de que o termo nem sempre inclui todas as pessoas não resolve a questão do que ele significa nos textos cruciais. É um termo flexível. Pode referir-se ao mundo ou ao universo em que as pessoas vivem ou ao mundo e suas pessoas, com a ênfase no anterior. Pode ser usado hiperbolicamente. Significa principalmente o mundo dos seres humanos, em vez de natureza inanimada.
O comentário de Strange de que, passagens referindo-se ao “mundo” não significam cada indivíduo, mas referem-se ao lado cósmico da expiação e da renovação da criação, é bastante estranho e incapaz de comprovação. João 3.16 certamente não é uma declaração sobre o aspecto cósmico da expiação e da renovação da criação. Trata-se do amor de Deus pela humanidade, cujo propósito é especificamente afirmado ser para que os crentes não pereçam, mas tenham vida eterna. Não há qualquer dica aqui de preocupação com outras coisas que não o mundo dos seres humanos. A longa tradição que trata este texto como um convite à fé e à salvação indica como ele foi planejado para ser entendido.
Ademais, o texto não faz sentido se o significado real (secreto) for: “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho [para morrer por algumas pessoas deste mundo] para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”. Tal paráfrase falha em dois aspectos: (a). Ela qualifica o amor de Deus pelo mundo de forma que uma afirmação que mostra estar expressando a magnitude do amor divino é severamente diminuída em validade. (b). Ela implica que você não pode crer, a menos que você seja um daquele limitado grupo por quem Cristo morreu.
O termo “mundo” em si realmente não significa “um grupo limitado de pessoas dentro do mundo”. Carson acertadamente aponta que Deus pode condenar os pecados das pessoas enquanto ele ainda as ama e chora por todas aquelas que estão sob sua condenação e não se arrependerão. “Ele pronuncia condenação terrível em razão do pecado do mundo, enquanto ainda o ama de tal maneira que o presente que ele deu ao mundo, o oferecimento de seu filho, continua a ser a única esperança para o mundo”. É certamente impossível ler isso de tal forma que o “oferecimento de seu Filho” seja a esperança de apenas alguns no mundo, um número limitado por quem Cristo veio. Em tal caso, certamente não é possível para Deus amar o mundo pelo qual ele não deu o seu Filho para morrer. Nós também enfrentamos novamente o problema de Deus tendo um desejo não realizado que Berkhof presumivelmente não está disposto a permitir. Paráfrases como “Deus amou o [algumas pessoas do] mundo que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que [Deus causou a] crer não pereça” são extremamente implausíveis. Jesus veio para salvar o mundo, para que o mundo pudesse crer.
A ideia é confirmada por outras referências em João que nos dizem que Cristo tira os pecados do mundo (João 1.29; cf. 6.51), que ele é a luz do mundo e seu salvador (8.12; 9.5; 4.42, 1 João 4:14), que veio salvar o mundo (12:47), e que ele quer que seus seguidores sejam um para que o mundo creia (17.21). O sentido natural de tais declarações é que Jesus oferece a salvação para quem ouve a mensagem em todo o mundo, embora ele saiba muito bem que nem todos irão responder positivamente à sua mensagem. Não é possível limitar “mundo” para significar “todos sem distinção, mas não todos sem exceção”; o sentido claro das palavras é que a salvação está disponível para todos e é oferecida a todos, e pode ser recebida por aqueles que crerem.
O texto de 1 João 2.2 indica que Cristo morreu por nossos pecados e pelos pecados de todo o mundo. Embora tenha havido uma distinção no cap. 1 entre “nós” e “vocês” (1:5), isso desapareceu através dos vs. 6-10 onde os leitores estão incluídos no “nós” do escritor, e este é manifestamente o caso em 2:1 f. Portanto, pode-se rejeitar que “nós” refere-se aos crentes judeus e o “mundo” refere-se aos pré- escolhidos entre os gentios. A frase adjunta é de enorme importância, pois mostra que a salvação não é limitada àqueles leitores que já a tinham recebido e que não havia preocupação com os que estavam fora da comunidade cristã. Além disso, ele enfatiza que o mundo inteiro está em vista. Comentaristas corretamente reconhecem que a morte de Jesus é “suficiente para lidar com os pecados de todo o mundo, mas que o seu sacrifício não se torna eficaz até que as pessoas creiam nele. Este é o sentido “natural” da texto e deve ser adotado a menos que haja razão para rejeitá-lo.
Problemas para os defensores da universalidade
A pena para o pecado é exigida duas vezes
Defensores da expiação limitada argumentam que, se Cristo morreu por todos, e então algumas pessoas são condenadas a sofrer a penalidade de seus pecados, isso é injusto, pois isso significa que a pena é paga duas vezes por seus pecados, uma vez por Cristo e uma vez por si mesmas.
A objeção baseia-se no pressuposto de que o ato de Cristo ter sofrido a condenação deve ser entendido da mesma maneira que o caso de uma situação humana; aqui, se o amigo da pessoa culpada sofreu a pena devida a ele (por exemplo, através do pagamento de uma multa em seu nome), então, seria injusto o tribunal exigir que a pessoa culpada também deve-se fazê-lo. Eu não sei o que aconteceria se a pessoa culpada protestasse e dissesse que não iria aceitar a ação feita em seu nome. É evidente que o tribunal não aceitaria dois pagamentos da multa, mas poderia respeitar a recusa da pessoa culpada em relação à oferta amigável. Mas este aspecto da analogia não pode ser forçado com respeito à morte de Cristo. Aqui, uma morte tem o potencial para livrar toda a humanidade da condenação, mas na verdade não o faz, a menos que o pecador esteja unido pela fé a Cristo e identificado com ele. Portanto, o ponto de vista que a morte de Cristo é suficiente para todas as pessoas, mas não se torna efetiva exceto para aqueles que aceitam a Cristo como seu substituto, é bom o suficiente. Mas dizer que a morte de Jesus é suficiente para todos, normalmente significaria que é uma morte para todos. No caso da pessoa que rejeita a Cristo, sua substituição em relação a eles é recusada.
O cumprimento dos propósitos de Deus
Objeta-se que, se Cristo morreu por todos, então o propósito de Deus não é realizado, pois a morte de Cristo pelas pessoas e a recepção real de salvação por elas são duas partes de um mesmo propósito indivisível. Mas Deus não pode ter propósitos que não são cumpridos.
Entretanto, mesmo na visão da expiação limitada, admite-se que Deus deve ter vontades que não são realizadas. As declarações de seu lamento com relação às pessoas não crerem, amarem e lhe obedecerem são evidências claras de que seus desejos não são cumpridos. Para contornar isso, Berkhof alega que o que “realmente” Deus quer e intenciona é algo diferente e oculto a nossa visão. Temos, portanto, de lidar com um Deus que engana a humanidade por dizer que ele deseja a salvação do ímpio, mas secretamente determinou não fazer nada no caso de alguns, passando por cima deles.
Mas não é claro nas premissas de Berkhof como é possível para um Deus perfeito ter vontades não realizadas. Para o Deus de Berkhof, ter desejos não realizados é certamente uma negação da sua perfeição. Além disso, a linha entre os desejos e propósitos é muito fina, e é duvidoso que se possa resolver o problema fazendo uma distinção entre propósitos não cumpridos (não é possível para Deus) e desejos não realizados (possível para Deus).
O fator crucial é que há mal no universo, e não há nenhuma maneira que Deus possa trabalhá-lo em seus propósitos e desejos de forma que tudo seja inteiramente como ele gostaria que fosse. Caso contrário, o mal seria totalmente superado, ou teríamos de dizer que Deus aceitou o mal como parte de seu propósito (o que seria extraordinário, dada a força de suas condenações disso nas Escrituras!). Mas, uma vez que se reconhece que Deus pode ter desejos e propósitos que não são cumpridos, então a ligação entre a expiação e a salvação real não precisa mais ser pressuposta.
A inseparabilidade da expiação e recepção de salvação
No entanto, devemos também questionar se existe uma ligação inseparável entre a compra e a concessão da salvação. Não há dúvida de que Deus providencia: (a). a expiação, através da qual a salvação é possível, e (b). os “meios da graça” através dos quais a salvação se torna uma realidade para o indivíduo. Isso não está em disputa, e isso significa que a salvação é do início ao fim uma obra de Deus. Mas, reconhecer estas duas disposições não é exatamente igual a dizer que elas são uma só, ou que são a mesma coisa, ou ainda que não se pode ter um sem a outra. Notamos que Berkhof afirma encontrar apoio para a estreita ligação entre expiação e a aplicação de seus efeitos no fato de que a obra do sacrifício de Cristo e sua intercessão são dois lados de uma mesma e única obra; já que a última é limitada àqueles realmente salvos, assim a primeira também é. Ele cita Jo 17:9, onde Jesus não ora pelo mundo, mas por aqueles que o Pai lhe deu. Entretanto, essa interpretação negligencia João 17.20, onde Jesus diz que a sua oração não é somente por eles, mas por aqueles que creriam nele através de sua mensagem, e seu pedido era em favor de que eles fossem um, para que o mundo pudesse crer que Deus o havia enviado. Essa é sem dúvida uma oração em favor do mundo.
A pregação do evangelho pressupõe uma distinção entre o que Deus tem feito em Cristo e a necessidade das pessoas responderem a isso, com o reconhecimento de que a resposta pode ser negativa. Em 2 Co 5.18-21 Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, mas isto é seguido por seus embaixadores colocando uma oferta diante das pessoas, a qual elas são chamadas a aceitar para que possam, de fato, ser reconciliadas com Deus. Em nenhum lugar a linguagem de Paulo implica que a “suportação” do pecado seja meramente para aqueles a quem ele sabe que irão responder positivamente. Falta-nos quaisquer declarações que dizem que Cristo morreu apenas por uma parte da humanidade; aqui de fato ele estava reconciliando consigo o mundo, não contando ofensas contra “eles”, ou seja, as pessoas que estão incluídas em “o mundo”.
Berkhof argumenta ainda que “a expiação assegura o cumprimento das condições que devem ser satisfeitas, de modo a obter a salvação”. Mas os textos que ele cita não provam seu ponto. Dizer que Deus fornece os meios de aceitação, ou seja, a fé e do dom do Espírito, não requer que Deus, tendo dado Cristo pelos pecados do mundo, deva agir para salvar cada indivíduo.
Finalmente, existe o problema de textos que podem sugerir que alguns pelos quais Cristo morreu podem, eventualmente, não chegar à salvação. A referência em Rm 14.15 sobre a possibilidade de destruição do irmão por quem Cristo morreu é tomada por Berkhof para se referir a uma possibilidade que Deus não vai permitir que a aconteça. Se isso é assim ou não, Paulo foi claramente capaz de usar essa linguagem para fazer seu ponto, e ele não poderia ter feito isso se acreditasse que a morte de Cristo por alguém fosse infalível para levá-lo a salvação. Berkhof afirma que 2 Pe 2.1 e Hb 10.29 referem-se a crentes nominais não-eleitos, os quais diziam (falsamente) que Cristo os comprara. Este pode ser o caso, mas é baseado na pressuposição de que o pré-escolhido não pode cair e, portanto, é um argumento circular.
O mesmo ponto geral é também desenvolvido por Letham, que argumenta que seria inconsistente para Deus fornecer a expiação para todos e os meios da graça só para alguns. Isto, no entanto, não é auto-evidente. Em qualquer compreensão do assunto, há uma distância entre o que Deus quer que aconteça e o que é alcançado. As demonstrações de seu amor para o mundo e de seu desejo que nenhum pereça estão juntas ao fato de que alguns perecem. Este é o paralelo entre sua provisão de salvação para todos e o fato de que ela não é recebida por todos.
A ladeira escorregadia ao universalismo
Berkhof afirma que a universalidade da provisão leva logicamente à aceitação universal da salvação. Cristo removeu a culpa de todas as pessoas, portanto, ninguém pode perder-se. Mas isto é imputar àqueles que discordam dele o mesmo erro que ele comete, ou seja, que qualquer um por quem Cristo morreu é infalivelmente trazido à salvação final, e isso simplesmente não é verdadeiro se nós reconhecermos que há uma distinção entre a provisão e finalização. Aqui Berkhof argumenta em círculo.
Na verdade, o perigo do argumento universalista pode ser aplicado a ambas as linhas de pensamento e não é, portanto, um argumento que os calvinistas possam usar contra os arminianos.
Para os arminianos, existe o quebra-cabeça porque se Deus providenciou salvação para todos, ele não fez mais para assegurar que todos a recebam. A resposta arminiana é apelar para o mistério do pecado humano e da rebelião que permanece um enigma.
Para os defensores da expiação limitada, há a questão de por que Deus determinou definir limites tão restritos deixando de fora tantas pessoas. É compreensível que os opositores da expiação limitada pensem que a imagem de Deus que emerge da noção de uma expiação limitada é a de um Deus não muito atraente, cujas decisões são pautadas por capricho. Sua imagem como um Deus de amor foi colocada abaixo do seu direito de fazer o que quiser. Mas se ele é um Deus de amor, não deve ser o amor característico de tudo o que ele decide e faz?
Justiça e da misericórdia
Aqui, deve ser abordado um ponto que é levantado por vários estudiosos, incluindo particularmente Helm e Letham. Este é o argumento de que há uma diferença na “lógica” da justiça e misericórdia. “Justiça, por natureza, não pode ser compensada, mas deve ser aplicada por todos. Por outro lado, misericórdia é um dom gratuito, inesperado e imerecido, e por sua própria essência, não pode ser exigido como uma obrigação, mas em vez disso é exercido soberanamente por quem concedê-lo. Falamos da prerrogativa de misericórdia, mas da necessidade de justiça”.
Este argumento de que Deus não tem a obrigação de mostrar misericórdia para com todos e, portanto, é perfeitamente justo em condenar alguns enquanto demonstra misericórdia com os outros, é frequentemente utilizado, mas é falho.
Primeiro, a justiça e a misericórdia não podem ser rigidamente separadas uma da outra. Nós esperamos que a misericórdia seja exercida de forma justa. No contexto humano, a prerrogativa de misericórdia é geralmente usada quando há circunstâncias fundamentais que justificam a não exigência de uma pena ou algo melhor do que isso; portanto, uma mulher grávida pode ser sentenciada a um período mais curto de prisão do que outro criminoso. Ou uma anistia pode ser anunciada na crença de que esta será uma maneira mais eficaz de remover um grande número de armas ilegais de circulação ao invés de tentar detectar e punir os portadores. Pode haver algum grau contingente de injustiça (por exemplo, para pessoas que não conseguiram cumprir o prazo para a anistia), mas isso não afeta o princípio geral de que o exercício da misericórdia é feito por uma boa causa; a misericórdia exercida é justificada e não arbitrária. Portanto, a ideia de que Deus pode arbitrariamente exercer misericórdia para com alguns e não para com outros, deve ser considerada injusta. Um juiz que trata uma mulher grávida com misericórdia, mas não apresenta nenhuma para com outra em semelhante circunstância, não seria tolerado.
Segundo, devemos nos lembrar de que presumivelmente não há limites estabelecidos para a capacidade de provisão da misericórdia de Deus. Pode-se entender que, em uma situação humana, onde os recursos são limitados (por exemplo, a disponibilidade de fornecimento de uma droga que salva vidas), escolhas arbitrárias podem necessitar ser feitas tanto para os que recebem quanto para os que lhes é negado. Mas no caso de Deus, seguramente não há limites em seus recursos e, portanto, não há razão para ele ser forçado a fazer uma distribuição arbitrária da sua misericórdia. Se Deus pode mostrar misericórdia para alguns, ele tem a capacidade de mostrar misericórdia para com todos.
Terceiro, o ensino bíblico sobre a graça e a misericórdia mostra que elas são motivadas essencialmente pela necessidade, desgraça e desamparo dos aflitos (Mt 9.36; Mc 5.19; 10.47, Lc 6.35 f.; 7.13; 10.33) e pecadores (Lc 15.20; 2 Co 8.9; 1 Tm 1.13; Hb 2.17 f.; cf. Jn 3.10 – 4.03). Deus os vê em risco de extinção e, portanto, ele sente pena deles e age para salvá-los. A misericórdia mostrada por Deus não é algo arbitrário que surge exclusivamente a partir de seus próprios propósitos inescrutáveis; pelo contrário, ela é despertada por seu reconhecimento da necessidade de pecadores indefesos. É isso que explica a ação da graça de Deus em dar o seu Filho como Salvador e criar a Igreja para ser a embaixadora da salvação e reconciliação (cf. Ef 2.1-10).
Mas aqui nós enfrentamos a objeção que, de acordo com Paulo, a misericórdia de Deus é seletiva em sua aplicação. O apelo é feito a Rom. 9:6-24, onde parece que a misericórdia de Deus é mostrada para alguns e não para outros. O argumento geral de Paulo aqui é que as promessas de Deus não falham simplesmente porque o povo escolhido falhou em seguir o messias. No entanto, seu objetivo principal é enfatizar que a misericórdia é prerrogativa de Deus e não é a uma resposta às obras humanas (Rm 9.11f.., 16); consequentemente, não pode ser reivindicada como um direito ou como algo merecido por ninguém, mas continua a ser o ato de Deus em sua liberdade (Rm 9.15). Isto é ilustrado pela escolha de Jacó para ser o pai do povo escolhido, em vez de seu irmão Esaú; isso não depende de nada realizado por um ou outro para merecer o favor de Deus. Ao final da seção, Paulo declara que o propósito de Deus à luz de Cristo é “ter misericórdia para com todos” (Rm 11.32), no qual o pensamento é primariamente tanto de judeus como gentios, ambos como grupos que foram desobedientes e caíram sob juízo as distinções anteriores entre Isaque e Ismael, e entre Jacó e Esaú são superadas no cumprimento dos propósitos de Deus. Se Paulo está trabalhando aqui com uma distinção entre os judeus, que foram escolhidos como povo de Deus e os gentios que não foram escolhidos, ele está dizendo que isso não é mais um barreira para os gentios receberem a misericórdia de Deus; e se há um endurecimento em parte de Israel no tempo presente, ele não é permanente. Consequentemente, o argumento histórico de Paulo de que as pessoas não podem reivindicar misericórdia com base em suas obras, não implica que a sua misericórdia é agora seletiva e arbitrária. Na verdade, o oposto é verdadeiro; se a escolha de Israel era em algum sentido vista como a exclusão arbitrária dos gentios, a redenção em Cristo para os judeus e Gentios termina com isso completamente. Ele antecipa a extraordinária entrada de gentios e judeus à salvação.
Não há dúvida que isso não resolve todos os nossos problemas. Ele não explica por que o evangelho não chegou e não alcança todas as pessoas, como se Deus não fosse capaz ou não quis evangelizar o mundo, apesar de sua ordem aos discípulos de ir por todo o mundo e fazer discípulos de todas as nações; se se objetar que isso não se refere a cada pessoa individualmente, mas apenas para as nações, o ponto ainda está de pé, pois muitas nações nunca ouviram o evangelho.
É impossível produzir uma teodicéia que responda a todas as nossas perguntas. O próprio Letham invoca este ponto quando tenta explicar a relação entre a particularidade e a universalidade da expiação. Isto significa que não podemos descartar tanto a expiação limitada como os entendimentos de universalidade, alegando que qualquer um deles deixa-nos com perguntas. Pelo contrário, o objetivo deste artigo é insistir que devemos fazer justiça ao ensino da Escritura, e não produzir uma doutrina de Deus que não esteja em harmonia com o ensino bíblico. A doutrina da expiação limitada não faz justiça ao ensino bíblico; ela exige uma leitura forçada e não natural dos textos. A doutrina da universalidade trata os textos de uma maneira melhor, mesmo que isso não resolva todos os problemas.
Pregando para os réprobos
Finalmente, há o argumento apresentado pelos defensores da expiação limitada de que esta doutrina não é incompatível com a oferta bona fide do evangelho para aquele que não têm esperança de ser salvo, pois Cristo não morreu por ele. Berkhof argumenta em sua própria defesa:
(a). A oferta do evangelho é simplesmente uma promessa de salvação para aqueles que creem, sem revelar a vontade secreta de Deus.
(b). Qualquer oferta está condicionada à fé e ao arrependimento processado pelo Espírito Santo.
(c). A oferta de salvação não diz que Cristo fez expiação por todos e que Deus quer salvar cada um. Ela simplesmente diz que a expiação é suficiente para todas as pessoas, descreve a natureza da fé e do arrependimento que são necessários, e promete que aqueles que vierem com o verdadeiro arrependimento e fé serão salvos.
(d). A tarefa do pregador não é harmonizar a vontade secreta de Deus e sua vontade revelada, mas simplesmente pregar o evangelho indiscriminadamente.
(e). Deus pode adequadamente chamar os não-eleitos para fazer algo que seja do seu agrado.
(f). A pregação do evangelho serve para remover qualquer vestígio de desculpa dos pecadores cujo pecado culmina em se recusar a aceitá-lo.
Estes argumentos são falaciosos. O defensor da expiação limitada diz que a morte foi somente para os pré-escolhidos (e não realmente para “o mundo”), mas que poderia ter sido suficiente para um número maior, enquanto que o defensor da expiação ilimitada, diz que a morte foi em nome de todos, mas torna-se eficaz na liberação da condenação apenas para aqueles que a aceitam. Os defensores da expiação limitada precisam ter uma morte que é suficiente para todos de modo que aqueles que rejeitam a Cristo realmente o fazem para algo que lhes estava disponível. Mas uma vez que isso é admitido, sua visão começa a parecer um jogo de palavras. A outra interpretação (ilimitada) tem a óbvia vantagem de tomar os textos de uma forma clara.
Mas dizer que a expiação é suficiente para todas as pessoas, porém não foi feita em lugar de todas elas, é sem sentido. Como pode a expiação ser suficiente para as pessoas para as quais ela não foi feita? Isso é puro casuísmo não convincente. Ademais, isso contradiz o próprio princípio de Berkhof que a expiação e a aplicação da salvação são duas partes indissociáveis de um único propósito de Deus. Baseado nessa premissa, como pode esse Deus produzir uma expiação que é suficiente para todas as pessoas sem também providenciar a quantidade de chamadas eficazes que seja suficiente para todas as pessoas? Nem é justo Deus chamar o não-escolhido para fazer o que ele não pode por definição fazer. Se Deus se recusou a estender a eles a mesma graça que ele dá para os pré-escolhidos, eles têm a desculpa de que ele pediu para fazerem o que lhes é impossível (já que, por definição, eles não podem se arrepender a menos que Deus os habilite). O fato de Berkhof estar reduzido a argumentos pouco convincentes e ilusórios, mostra apenas claramente as falhas em sua posição basilar.
Conclusão
Eu argumentei que o Novo Testamento ensina claramente que a morte de Cristo não foi limitada em seu escopo, e que os textos que positivamente afirmam isso devem ser tomados em seu sentido natural em vez de ter um senso não natural imposto sobre eles pelo bem de um sistema dogmático. É o sistema que requer uma revisão e não o claro ensino das Escrituras. O Novo Testamento não ensina que a morte de Cristo é limitada em seu alcance aos pré-escolhidos para a salvação. Segue-se que a tentativa para enfraquecer esta parte da fundação das explorações teológicas de Clark Pinnock não é bem sucedida, e as questões que ele levanta não podem ser tão facilmente evitadas ou consideradas como impróprias. Ao mesmo tempo, este é o caso em que um dos cinco pontos de Dort é demonstrado falhar exegeticamente, e deveríamos nos contentar em reconhecer que há algumas questões sobre a salvação que não são resolvidas recorrendo a um decreto secreto de Deus que vai contra o seu amor declarado pelo mundo e desejo de que nenhum pereça, mas sim por um reconhecimento de que o mistério do mal está além de nossa compreensão.
Tradução: Samuel Paulo Coutinho
Fonte: CACP
Imagem: Google
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