Uma das grandes razões para que a confusão quanto
ao Sola Scriptura e ao Princípio Regulador do Culto (PRC) se instaure, é o fato
de que a Bíblia parece regular o culto de forma mais intensa do que regula
outras áreas da vida. Samuel Waldron escreveu: “Parece que um dos
obstáculos de ordem intelectual que impede os homens de aceitarem o Princípio
Regulador é que este envolve a ideia de que a igreja e seu culto foram
ordenados de maneira diferente do restante da vida. No que concerne ao restante
da vida, Deus estabelece para os homens os grandes e abrangentes princípios de
sua Palavra e, de acordo com os limites estabelecidos nestas orientações,
permite que eles conduzam suas vidas da melhor forma que puderem. Ele não dá
aos homens orientações detalhadas sobre como devem edificar suas casas ou
seguir carreiras seculares. O Princípio Regulador, por outro lado, envolve uma
limitação na iniciativa da vontade humana, o que não é característico no que se
refere ao restante de nossa vida. Evidentemente, isto admite que existe uma
diferença entre a maneira como o culto da igreja deve ser regulado e a maneira
como o restante da sociedade e a conduta humana devem ser ordenadas. Portanto,
o Princípio Regulador está sujeito a ofender muitas pessoas, por
considerarem-no como opressivo, específico e, por conseguinte, sob suspeita,
por não estar de acordo com a maneira de Deus lidar com os homens e orientar os
outros aspectos de nossa vida”.
Quando falamos do Sola Scriptura, precisamos ter em
mente que "Toda a Escritura é divinamente
inspirada, e proveitosa para ensinar, para redargüir, para corrigir, para
instruir em justiça; Para que o homem de Deus seja perfeito, e
perfeitamente instruído para toda a boa obra" (2Tm 3:16-17) e isso
se traduz de forma intensa sobre o modo como enxergamos a Palavra de Deus. Se
"Toda a Escritura é divinamente inspirada"
- isto é, os 66 livros da Bíblia - então devemos compreender que de Gênesis à
Apocalipse temos tudo o que é necessário para nos guiar e nos conduzir em fé,
santidade, amor, justiça, dedicação, salvação, culto ao Senhor... Conforme
vimos semana passada (clique
aqui para ler), esse ponto não se traduz de forma que encontramos
literalmente todas as situações diárias e vividas pelo homem nas Sagradas
Escrituras. Não há versículos sobre as células troncos nem tampouco sobre como
as lagostas se reproduzem, contudo, isso não significa que Deus não controle e
arquitete essas e todas as outras situações que se fazem presente na terra.
É importante também notarmos que o fato de muitos
professos da fé cristã terem se apartado do Sola Scriptura, se dá quase que da
mesma forma do povo israelita: "Então disse o sumo
sacerdote Hilquias ao escrivão Safã: Achei o livro da lei na casa do SENHOR. E
Hilquias deu o livro a Safã, e ele o leu" (2Rs 22:8). Tal qual os
israelitas haviam se esquecido do Senhor e vivam conforme suas imaginações
e pretensões, assim também muitos tem vivido de forma desordeira e
baseando suas crenças naquilo que lhes traz mais prazer e conforto mundano.
A vida cristã - por mais óbvio que possa parecer -
é pautada pelo ensino Bíblico e pelo exemplo vivo de Jesus Cristo que esteve
fisicamente entre nós e agora está presente em nossos corações através do Seu
Santo Espírito que nos guia em toda a verdade. Contudo, muitos parecem
confundir as "esferas" de atuação do ensino bíblico. Deixe-me
explicar.
Embora a Bíblia nos ensine sobre o governo
eclesiástico e o governo civil, eles são coisas distintas e assim devem ser
tratados.
Sobre o governo eclesiástico: "Esta é uma palavra fiel: se alguém deseja
o episcopado (pastoreio), excelente obra
deseja. Convém, pois, que o bispo seja irrepreensível, marido de uma
mulher, vigilante, sóbrio, honesto, hospitaleiro, apto para ensinar; Não
dado ao vinho, não espancador, não cobiçoso de torpe ganância, mas moderado,
não contencioso, não avarento; Que governe bem a sua própria casa, tendo
seus filhos em sujeição, com toda a modéstia (Porque, se alguém não sabe
governar a sua própria casa, terá cuidado da igreja de Deus?); Não
neófito, para que, ensoberbecendo-se, não caia na condenação do
diabo. Convém também que tenha bom testemunho dos que estão de fora, para que
não caia em afronta, e no laço do diabo (1Tm 3:1-7).
Sobre o governo civil: "Toda a alma esteja sujeita às
potestades superiores; porque não há potestade que não venha de Deus; e as
potestades que há foram ordenadas por Deus. Por isso quem resiste à
potestade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos
a condenação. Porque os magistrados não são terror para as boas obras, mas
para as más. Queres tu, pois, não temer a potestade? Faze o bem, e terás louvor
dela. Porque ela é ministro de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal,
teme, pois não traz debalde a espada; porque é ministro de Deus, e vingador
para castigar o que faz o mal" (Rm 13:1-4).
O que observamos nessas duas passagens bíblicas?
Observamos que ambos os governos são ministros de Deus, um na igreja e outro no
Estado. Contudo, as atribuições dos governos nem sempre se comunicam, isto é:
1. Enquanto
para ser ministro do Senhor se faz necessário não ser neófito (novo na fé),
para a carreira civil isso não é requerido (ainda que possa ser aconselhável -
caso seja um crente que venha a assumir o posto).
2. O
governo eclesiástico é formado por crentes em Cristo Jesus, já o governo civil
muitas vezes é praticado por homens não tementes a Deus.
3. O governo
eclesiástico pode e deve aplicar a disciplina àqueles membros que não se
sujeitam à sã doutrina, mas o governo civil não tem parte nesse assunto, pois
essa disciplina compete à igreja do Senhor.
4. O fato
do governo eclesiástico não ter autorização para eliminar o malfeitor da
sociedade, não significa que o governo civil também não tenha essa autorização
e incentivo para que erradique o malfeitor da sociedade (sobre esse ponto, leia
o texto "Quando
matar não é crime nem pecado").
Sob esse prisma das "esferas" de atuação
da Bíblia, importa-nos fazer a diferença entre o culto público e o culto
particular.
Elementos constitutivos do culto público:
- Pregação a partir da Bíblia - Mt 26.13; Mc 16.15;
At 9.20; 1Tm 4.13; 2Tm 4.2; At 17.13.
- Leitura da Palavra de Deus - Mc 4.16-20; At
13.15; 1Tm 4.13; 1Co 11.20.
- Audição da Palavra de Deus - Lc 2.46; At 8.31; Rm
10.17; Tg 1.22; Lc 4.20; At 20.9.
- Oração a Deus - Mt 6.9; 1Ts 5.17; Hb 13.18; Fp
4.6; Tg 1.5.
- Administração dos sacramentos - Mt 28.19; Mt 26.26-29; 1Co 11.24,25.
- Reunião no dia do Senhor - At 20.7; 1Co 16.2; Ap
1.10; 1Co 11.18.
- Cântico de salmos - 1Co 14.26; Ef 5.19; 1Cr 16.9; Sl 95.1,2; Sl 105.2; Cl
3.16.
Elementos constitutivos do culto
particular:
Embora a Bíblia não seja um guia que dispõe
literalmente todas as ações humanas, o Senhor nos deixou uma máxima que precisa
ser rigorosamente seguida: "Portanto, quer comais
quer bebais, ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo para glória de Deus"
(1Co 10:31). Aqui, Paulo está nos dizendo que TUDO, absolutamente TUDO o que
fazemos deve ser feito para a glória de Deus.
Para Calvino, a glória de Deus dividia-se em três
dimensões:
1. A
Glória Celestial de Cristo (Sua glória nos céus, não alcançável pelo homem - Tt
2.13);
2. A
Glória como mediador (Sua glória na predestinação e mediação com o
Pai - Ef 1.11);
3. A
Glória dos filhos de Deus (Sua glória em revelar-se ao Seus filhos - Cl 1.27).
Então, o que Paulo está a nos instruir é que tudo
em nossa vida deve refletir a glória de Deus. Tudo o que fazemos deve ser feito
para a glória de Deus e não há nada mais importante para nós do que buscarmos
conhecer aquilo que Deus requer de Seus filhos. Só podemos glorificar
ao Senhor quando sabemos quais são os seus preceitos. Tão qual quando uma
esposa busca agradar seu marido dando-lhe presentes que não lhe são agradáveis,
assim também somos nós quando tentamos fazer a vontade do Senhor oferecendo-lhe
coisas que não lhe satisfazem o coração. Temos uma ilustração bíblica que
elucida essa questão:
"E conheceu Adão a
Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu à luz a Caim, e disse: Alcancei do SENHOR
um homem. E deu à luz mais a seu irmão Abel; e Abel foi pastor de ovelhas,
e Caim foi lavrador da terra. E aconteceu ao cabo de dias que Caim trouxe
do fruto da terra uma oferta ao SENHOR. E Abel também trouxe dos
primogênitos das suas ovelhas, e da sua gordura; e atentou o SENHOR para Abel e
para a sua oferta. Mas para Caim e para a sua oferta não atentou. E
irou-se Caim fortemente, e descaiu-lhe o semblante" (Gn
4:1-5).
Não sei você, mas eu cresci aprendendo que o fato
de o Senhor não aceitar a oferta de Caim foi porque ele não havia feito de todo
o coração - mas em que lugar das Escrituras achamos tal explicação? Respondo:
Hb 11.4. Mas o problema de Caim não foi oferecer de falso coração - pois em
momento algum somos informados de que ele ofereceu de forma desonrosa - mas sim
oferecer de forma não prescrita por Deus. Sobre esse ponto, (além de outros que
concordam com essa posição) Brian Schwertley diz:
O que havia na oferta de Caim para torná-la
inaceitável aos olhos de Deus? A preferência pela oferta de Abel e a rejeição
da de Caim não foi arbitrária; ela se baseou na revelação apresentada a Adão e
sua família. ...Deus revelou essa informação a Adão ao matar animais para
cobrir o homem e sua mulher (Gn 3.21). Gerações mais tarde, Noé sabia que Deus
aceitaria apenas animais e aves puros como holocausto (Gn 8.20). Caim,
diferentemente do irmão Abel, decidiu, à parte da Palavra de Deus, que a oferta
de frutos da terra seria aceitável ao Senhor. Deus, porém, rejeitou a oferta de
Caim por ser uma invenção de sua mente. Ele não a ordenara; portanto, ainda que
Caim fosse sincero no desejo de agradar a Deus, ele a rejeitaria da mesma
forma.
Deus espera fé e obediência à sua Palavra. Se o
povo de Deus pode cultuar o Senhor segundo sua vontade, pelo fato de ordenanças
humanas não serem expressamente proibidas, então não poderiam Caim, Noé ou os
levitas oferecer a Deus uma salada de frutas ou uma cesta de nabos, por não
haver proibição? E se Deus desejasse uma regulamentação estrita de seu culto à
parte do PRC, não seriam necessárias centenas de volumes (ou talvez milhares
deles) para nos informar das proibições? No entanto, Deus, em sua infinita
sabedoria, diz: “Tudo o que eu te ordeno, observarás
para fazer; nada lhe acrescentarás nem diminuirás” (Dt 12.32). [2]
Portanto, percebemos que mesmo o culto
particular - isto é, o nosso deitar, levantar, comer, trabalhar,
casar, procriar, divertir, estudar, construir, aconselhar... - deve ser pautado
pelas Escrituras. É preciso que reconheçamos a diferença entre cultuar a Deus
de forma particular e em conjunto com os outros irmãos. Em casa, podemos tomar
banho e louvarmos ao Senhor por suas grandes riquezas e maravilhas; ao jogarmos
futebol com os amigos, louvarmos a Deus pela Sua criação e irmãos preciosos que
nos tem dado; ao trabalharmos, louvarmos a Deus pelo sustento que nos têm
concedido; ao juntar alguns amigos e tocar boa música, louvamos o Seu nome pela
habilidade que tem nos dado para executar os instrumentos, contudo, não é
porque essas práticas são lícitas em nosso dia a dia que devem ser incorporadas
como sendo parte do culto ao Senhor.
Escrevendo ao seu amado Timóteo, Paulo diz: "Conserva o modelo das sãs palavras que de mim tens ouvido, na
fé e no amor que há em Cristo Jesus. Guarda o bom depósito pelo Espírito
Santo que habita em nós" (2Tm 1:13-14). Ao lermos as cartas de
Paulo a Timóteo, em momento algum vemos que Paulo estimula Timóteo a adicionar
elementos não ensinados por ele e que não prescritos pelo AT - que já era
corrente naqueles dias - e também não lhe diz para que fizesse o culto de acordo
com a sua geração, mas que tão somente trouxesse "à
memória a fé não fingida que em ti há, a qual habitou primeiro em tua avó
Lóide, e em tua mãe Eunice, e estou certo de que também habita em ti"
(2Tm 1.5).
Semana que vem começaremos a ver de forma mais detalhada
os elementos constitutivos do culto, isto é, (nesta ordem) a pregação
a partir da Bíblia, leitura da Palavra de Deus, audição da Palavra de
Deus, oração a Deus, administração dos sacramentos, reunião no dia do Senhor e
cântico de salmos
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